Quis o destino que quando o apocalipse chegasse Marina estivesse trancada em um apartamento com alguém que ousou dizer que não a amava mais. Acompanhe a história contínua de Milly Lacombe na Tpm
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Quarentena, dia 10
"Bom dia. Hoje é o décimo dia que estou aqui, posso sair?"
Marina acordou às oito da manhã e viu a mensagem de Otávio, enviada às seis. Tinha trabalhado até tarde e esqueceu que a quarentena que ele cumpria dentro da quarentena que o Brasil fazia tinha expirado. Não estava ansiosa para ver a cara dele, nem para compartilhar com ele os mesmos espaços, mas não havia mais o que alegar para mantê-lo preso em um cômodo de 12 metros quadrados.
“OK”, ela respondeu e foi tomar banho. Saiu do banho, colocou um short e uma regata sem sutiã porque não via mais sentido em usar sutiã e foi para a cozinha, onde viu Otávio de calção e sem camisa encostado na pia, xícara de café na mão e olhando para a porta, como se estivesse esperando ela aparecer.
– Bom dia. Fiz café – ele disse sem se aproximar e apontando com o queixo para a garrafa térmica que estava sobre a mesa.
– Bom dia. Que bom. Obrigada – ela respondeu cordial pensando que Otávio parecia um estranho agora. Magro e pálido, mas sem olheiras e com alguns músculos abdominais querendo quem sabe aparecer para o mundo. Quando eles se conheceram ele era um homem forte e musculoso, mas os anos foram deixando Otávio mais magro e de certa forma desinteressante. Ele faria 52 anos em junho, era 11 anos mais velho do que ela, mas a diferença de idade nunca a incomodou.
– Como você tá? – ele quis saber. Era uma pergunta que não precisava de resposta. Ela estava péssima, ele podia ver. Magra, pálida e com uma olheira profunda.
– Ótima
– Que bom, Marina. Fico feliz que esteja bem
Depois de um silêncio que pareceu durar horas ele perguntou:
– Não quer saber como eu tô?
– Tô te vendo, Otávio. Você não me parece nada bem.
– Curioso, né? Eu deveria estar ótimo depois de passar dez dias trancado em um quarto sem ver a luz do sol e com acesso restrito à cozinha.
– Vai começar o drama. Bora lá – ela disse depois de se servir de café, sentando na cadeira e cruzando as pernas – Eu já estava até com saudade do seu teatro. Conta como o privilégio de ter um teto, uma cama, comida e banheiro para encarar a pandemia te dilacera.
Otávio dá um gole no café antes de dizer:
– Você acha que eu não reconheço esse privilégio apenas porque consigo dizer que não tô bem? É dever moral estar bem porque sou privilegiado? Vamos tirar a condição humana dessa crise? Todos nós temos o sagrado direito à tristeza, sabia?
– Vai dizer isso pra quem mora nas favelas e nas periferias, vai. Vai falar de direito à tristeza e de condição humana para quem não sabe se vai fazer a próxima refeição e nem como vai evitar se contaminar, ô Nietzsche de Laranjeiras. E eu tô sem tempo para filosofar hoje, tá? Tô tentando pagar as contas, então sabe como é. Agora vou ali na sala abrir meu escritório. Se puder seguir com sua filosofia de boteco em silêncio, eu agradeço. Ah, e obrigada pelo café.
Marina saiu da cozinha com vontade de colocar Otávio para fora de casa, mas sabia que não teria essa coragem. Quis o destino que quando o apocalipse chegasse ela estivesse trancada em um apartamento com alguém que ousou dizer que não a amava mais. Teria que lidar com a situação de todas as vezes que olhasse para Otávio lembrar das palavras saindo de sua boca. “Eu não te amo mais, Marina”. Ela só não tinha ideia de como faria isso. Não estava preparada para o colapso do mundo lá fora, e agora percebia que também não estava preparada para o colapso do mundo aqui dentro.
Esta história continua. Acompanhe os próximos capítulos na Tpm.
Créditos
Imagem principal: Manhã Ortiz