Na pele da Amanda, da novela ”Amor de mãe”, a atriz fala sobre ativismo, política, autoestima, religião e virgindade
Os cabelos curtos recém tingidos de loiro logo apontaram a localização de Camila Márdila em um café, na zona oeste da capital paulista. Ali, antes do horário combinado, a atriz de 31 anos aguardava a reportagem da Tpm bem acompanhada de uma xícara de café e de Susan Sontag – entrevista completa para a revista Rolling Stone, livro de Jonathan Cott. “Susan deveria ser canonizada. Desde sempre, vivo a partir as palavras dela, uma apaixonada pelo pensamento, o que me seduz muito”, pontua ela, que, na pele de Amanda, a fervorosa ativista ambiental de Amor de mãe, da Globo, faz sua estreia em novela de horário nobre.
Na casa onde nasceu e foi criada, em Taguatinga, cidade satélite de Brasília, porém, eram Deus – e não a escritora americana, feminista e feroz ativista dos direitos humanos – e seus ensinamentos bíblicos que estavam no comando. Filha de católicos fervorosos, a dona de casa piauiense Maria dos Remédios e o bancário mineiro Moisés Evangelista, Camila não desfrutou de luxos e nem de muita liberdade. “Em casa, não se conversava sobre sexo. O papo era casar virgem.” Aluna de colégio de freiras, ela lembra que, na infância, achava que se tornaria uma. E também que a timidez era tanta que preferia não tirar dúvidas em sala de aula, o que a fez desenvolver o dom de decorar, fundamental para o que viria a ser o seu ganha-pão como atriz.
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Depois de se formar em Comunicação Social na UnB, o teatro, que havia entrado em sua vida aos 11 anos para amenizar a timidez, dividiu espaço com a publicidade. Fez produção de set, preparação de elenco e direção de arte até o dia em que passou no teste para viver Jéssica, em Que horas ela volta?. Pelo papel no filme de Anna Muylaert, em 2015, conquistou o prêmio de melhor atriz no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, e, na sequência, emendou minisséries como Justiça e Onde nascem os fortes, seus primeiros trabalhos na Globo. Batemos um papo com a atriz sobre carreira, o desejo de ser freira, virgindade e outros temas. Olha só:
Tpm: Amanda, sua personagem em Amor de Mãe, é ativista ferrenha. Você já esteve no front defendendo alguma causa?
Camila Márdila: Não. Nem vegetariana eu sou, olha só como posso ser contraditória. Não vou me eximir lançando mão do discurso "não dá para dar conta de tudo". Mas não é por isso que não terei consciência, evitando desperdício e reaproveitando alimentos. Eu vivo para comer. Acordo porque existe uma coisa chamada café da manhã. Se estou de folga, passo a manhã fazendo o cuscuz, o café preto, as frutas. Na infância, fui criada no arroz, feijão e bife.
Como assim? A começar pela minha profissão. Sou de uma família extremamente conservadora e católica. Estudei em escola de freira por muito tempo. Eu era muito tímida. Não fazia pergunta em sala de aula porque não queria aparecer. Eu tinha como certo que seria freira no futuro – até cartinha às freiras escrevi manifestando o desejo. Além do jeito incrível de se vestir, elas eram as diretoras do lugar. Mandavam em tudo. Suas casas ficavam uma do lado da outra. Esse era o futuro que eu desejava: viver com as minhas amigas. Até que, aos 11 anos, fui matriculada em um curso de teatro pela minha mãe.
E o horizonte expandiu. Não havia livros em casa, mas eu gostava de estar em um espaço artístico. Aprendi a decorar porque minha mãe, que não teve estudo, não conseguia tomar a lição de casa comigo. O meu esquema, então, sempre fora decorar. Sem saber, ela me apresentou a esse exercício que, hoje, é a minha última preocupação. Achava muito histriônicas as peças infantis e, desde então, queria fazer teatro adulto. Eu já era uma atriz densa (risos). O curso terminava meia-noite e meia e, na manhã seguinte, tinha de estar na escola. Nunca cheguei atrasada em aula ou perdi prova. Era importante ter bom desempenho, para o teatro não ser culpado de nada. Decidi ser atriz porque foi o que viabilizou a minha comunicação com o mundo.
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Agora, com a novela, como anda o assédio de fãs? Gosto de morar em São Paulo. Aqui, as pessoas são anônimas. Curto fazer parte de uma multidão, de pegar metrô, ônibus. Você não faz ideia do tanto de mensagem que recebo no Instagram de gente dizendo que me viu no busão. É mais fácil viver a rotina de uma cidade não regida por uma mídia televisiva e de se entrosar com o povo. Mas já me senti incomodada ao ter a impressão de estar sendo observada. Houve um momento de leve noia no último Carnaval paulistano. As pessoas me abordavam, queriam tirar foto, conversar e eu, ali, com cara de louca, vai que eu estivesse usando alguma substância, bebido. Nessas horas, não quero ser pessoa jurídica. A sensação de ser observada, para tímidos como eu, que sempre preferi desaparecer um pouco, é um drama que carrego por ser atriz.
Quem a conhece apenas como atriz pode ter qual ideia sobre você? A maioria acha que sou sapatão. Na vida pessoal, essa imagem já era forte. Na época do Que horas ela volta?, ouvia muito histórias de fã-clube sapatão da Jéssica. Concatenando tudo sobre essa imagem, lembrei que, na época dos testes, a Anna me disse: “Você foi a única atriz que não tinha nenhum traço de sedução na forma de interpretar”. Aí comecei a pensar que existe um lugar de sedução atrelada à mulher. O tempo inteiro parece que a gente tem de estar seduzindo. Mas a Jéssica não seduzia ninguém.
E a Amanda? É zero sedução também. Está sempre focada no propósito. Observando outras cenas, comecei a ler os meus códigos físicos. Naquelas que envolvem um casal, o cara, geralmente, prensa a mulher contra a parede. Mas, em Amor de mãe, eu quem naturalmente prenso o meu par na parede, que tenho a ação de agarrar, ou de debochar do garoto que todo mundo ama. Passei a perceber, então, o que a Anna já tinha notado: sou um corpo feminino não submisso. De alguma forma, a minha mãe me ensinou a ser feminista mesmo sendo extremamente conservadora. Porque ela também tinha esse tipo de postura, que é próprio da nordestina, forte, que não deixa ninguém montar em cima. Eu e a minha mãe, hoje, conversamos mais sobre os assuntos. Mas a minha vida sexual foi bem problemática, lá atrás.
Em qual sentido? Em uma família cristã, conservadora, onde não se conversava sobre sexo, o papo era casar virgem. Na escola, não havia aula de educação sexual. O meu irmão, seis anos mais velho e namorando há 10 anos, não podia dormir com a companheira na nossa casa. Eu era a ovelha negra, porque esticava os limites. Saí de casa antes do meu irmão, para morar com um garoto que eu havia conhecido dois meses antes. Eu, que havia perdido a virgindade aos 19 anos, estava com 22 e ele, 30. Passei muitos anos com tesão reprimido, sem saber o que fazer. Minha mãe dizia: “você tem de casar virgem, porque os homens querem só transar e depois descartar. Mas, depois, tem de se entregar ao marido, porque ele tem suas necessidades”. Eu tinha amigos muito sensíveis, que representavam um tipo de homem que a minha mãe não conheceu, porque não existiam no contexto que ela viveu. E ficava muito triste ao perceber que ela, que foi dada pela minha avó para a minha bisavó criar, tinha vivido outra história.
Isso não deve ter sido nada fácil. Sim. A Dona Remédios virou um ser à parte da família. Era a única católica em meio a evangélicos. Quando comecei a me desgarrar, acharam que eu viraria prostituta e primas foram proibidas de andar comigo. Eu tinha furo na orelha, enquanto elas não podiam nem usar maquiagem. Mas, hoje, há backdrop no culto para elas posarem com o look no Templo de Salomão (risos). Então, fui descobrindo aos pedaços, sozinha, uma maneira de fazer esse negócio gostoso, que é proibido e sobre o qual eu não podia falar com ninguém. Vivi uma vida dupla por muito tempo, porque precisei mentir bastante dentro de casa. Era péssimo, porque não sabia mais quem eu era. E meus estímulos sexuais eram completamente conturbados até que conheci o namorado com quem perdi a virgindade.
Como e quando revelou aos pais que não era mais virgem? Eu ia escondida ao ginecologista. No momento em que eu estava com o segundo namorado, na faculdade, fui obrigada a fazer um cruzeiro com a minha família quando a minha vontade era ter ido para Alcântara, no Maranhão, com o meu namorado. Eu estava menstruada e entrei na piscina. A minha mãe, que sabia da menstruação, viu a cena e perguntou como eu pude entrar na piscina daquele jeito. Eu já tinha 21 anos e respondi que estava usando O.B. Ainda assim ela me perguntou e eu disse que não era mais virgem. Ela ficou dois dias sem falar comigo.
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Mas deve ter sido importante para, com o tempo, você ganhar autonomia. O mundo caiu para os meus pais, mas era uma barreira que que eu precisava romper. Sem esse peso e, mais pra frente, depois de eu morar junto com outra pessoa e ter uma perspectiva de casar e compartilhar a vida com alguém, criou-se uma outra relação entre eles e eu. O diálogo real começou a acontecer e passei a entendê-los como pessoas e não como pais. Eles não tinham noção biológica de como funcionava o corpo feminino e o masculino. Hoje, evoluíram muito e se arrependem. A Dona Remédios já era adorada pelos meus amigos, mas reproduzia os medos que sentia. Ela é uma mulher sensacional. Nos últimos anos, o processo vivido no Brasil, politicamente falando, fez com que meus pais se descobrissem com pensamentos mais autônomos em relação ao meio que vivem. Aí a gente se uniu mais como família. Eles já participaram das manifestações do #EleNão, no Rio. E a minha mãe já bateu boca em shopping no período de eleições. Sou muito orgulhosa por esse processo todo. É uma revolução.
Em Amor de mãe, além de serem as protagonistas, as mulheres são muito poderosas. Como você as vê? As protagonistas não são fortalezas invictas. Elas têm falhas éticas, morais, afetivas, pessoais. A Lourdes [vivida por Regina Casé] matou o marido, ainda que acidentalmente. A advogada Vitória [Taís Araújo] defende um ladrão, apesar de ter atitudes incríveis com outras pessoas. A mãe muito protetora [Adriana Esteves] é justificada pelo papo de que mãe pode tudo: comete atrocidades, tipo furar a camisinha do filho para ganhar um neto.
Os fins justificam os meios? Gosto como a novela discute questões polêmicas que não cabem, de imediato, no certo ou errado. Matar não é certo. Mas e se estou me defendendo de um cara que estava abusando de mim? É errado invadir e ocupar uma escola se estão tentando fechá-la? É condenável eu servir, em um jantar da empresa que polui a Baía de Guanabara, o mesmo alimento que é colocado na mesa do pobre? Não estou envenenando pessoas, mas pondo no prato delas o mesmo que o pobre recebe para comer. Ou a saída é deixarmos o empresário podre de rico fazer o que bem entende, inviabilizar todo um modo de sustento de moradores, enquanto insistimos no caminho da lei, essa lei que o rico compra? Há, no Brasil, locais onde pessoas não conseguem mais comer, porque já era a água para a pesca e a terra, para a agricultura. Deixamos todo mundo morrer então?
Você se sente representada por características ligadas ao feminino em novelas ou em personagens? Eu não acredito em coisas que são femininas e outras, masculinas. São gavetas para encaixarem as coisas.Vejo como uma redução, estanca o pensamento. Eu, por exemplo, não me sinto representada por vários aspectos ligados ao feminino, ao “ser mulher”. Comportamentos, sentimentos ditos de natureza feminina. E pouco importa, na verdade. Como diz a Susan Sontag, eu não quero ser "guetotizada"! A nossa mania de exclusão vem de um pensamento cartesiano: se não é isso, é aquilo. Se não homem, mulher. É claro que, como vivemos urgências nos âmbitos social e político, as resistências se organizam de acordo com os grupos e “guetos” que são vistos pela sociedade. São urgentes as lutas pela população negra, pobre, mulheres, gays, trans... Afinal, existe uma força contrária a isso tudo, que é tão grande e monstruosa e estrutural, e há de se estar atento pra que a gente não lute entre si, exaurindo as forças e deturpando o diálogo.
Como você define o ativismo da Amanda, sua personagem? A Amanda está radicalizando as ações. Não isento e nem culpo as personagens. A novela não facilita a gavetinha: trabalha o pensamento, algo importante para a dramaturgia. As narrativas são criadas para subverter alguma lógica. Eu, por exemplo, fiquei obcecada pela alemã Carola Rackete, presa ano passado ao atracar na Itália com 40 imigrantes porque desrespeitou fronteira. Com 31 anos, a minha idade, ela era a capitã do navio humanitário da Sea Watch [ONG que trabalha com resgate de refugiados no Mediterrâneo]! Que fronteira é essa? Qual o sentido dela, se pessoas estão precisando de locais para sobreviver? Carola agiu de maneira ilegal, mas e aí? Era uma ação humanitária. Essas questão precisam ser rediscutidas, não?
Em muitos casos o debate, quando produz mudanças, chega tarde demais. Em uma cena da novela, a Amanda fala para o personagem do [Vladmir] Brichta: “Davi, a gente retira um quilo de lixo da Baía de Guanabara e os caras poluem de volta com uma tonelada”. Parece que estão fazendo a gente de otário. Não é possível que fiquemos no blá-blá-blá pra sempre, comemorando 3% da meta necessária a ser atingida. Os nossos recursos são limitados e o mundo vai acabar pra quem não tem acesso. A gente vai pagar pela nossa água, nossa comida orgânica, pela nossa expectativa de vida de 120 anos e outras pessoas, que não podem pagar por isso, morrem aos 30. A Amanda não quer um mundo assim – e eu também não.
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A pegada da Amanda é tiro, porrada e bomba, né? Sim. A Amanda é um ser fora da curva do naturalismo da novela, quase uma personagem que não existe. E será cada vez mais uma esponja de todas as questões urgentes. O futuro, na visão dela, é muito distante e as coisas têm de mudar agora. O Álvaro [personagem de Irandhir Santos] é um empresário emergente, machista, acredita que tem de oprimir – e que manda matar – para não perder privilégios. Vejo telespectadores ridicularizando o discurso da Amanda de que o empresariado é o grande mal do país. A PWA [empresa de fabricação de plástico na novela] é uma representação de algo muito maior que tá por aí. Na vida real, a gente já ouviu áudio de gente do governo mandando matar outra pessoa. Se liga!
Qual pauta considera mais urgente? A indígena. Envolve pensamento, vivência, convivência, preservação, ideia de mundo. Só pelo fato de viverem de um jeito diferente, os índios já derrubam essa história de que o mundo é assim, ou seja, pautado por discursos de que temos de trabalhar até morrer, viver deprimido, com questões da contemporaneidade. Existem comunidades que vivem de outra forma, enxergam a morte e o consumo de outra maneira. Quanto aprendizado os povos originários poderiam nos passar enquanto estamos exterminando ensinamentos? O mundo não apareceu de repente. Seus recursos são limitados. E não dá para comprar outro mundo, se acontecer qualquer coisa.
Você está sempre de olho no outro. Onde se encontra a sua vaidade? Em um lugar para manter a dignidade do meu trabalho. O novo me desafia. A dificuldade me dá tesão e não me sinto bem em zona de conforto. Por isso, reajo muito mal a elogios. Como o meu forte nunca foi uma beleza física arrebatadora, investi na inteligência para ser reconhecida. Isso culminou em um tipo de vaidade que tem receio de ser incorporada à Camila e não à atriz. É difícil explicar. Não à toa, tento entender também na terapia. Mas, claro, fisicamente falando, adoro me arrumar. Tenho o meu estilo, o meu jeitão. Hoje, vejo beleza nisso. Sou uma gata desse jeito.
Onde mais o divã te ajuda? Sempre quis fazer terapia, porque a professora de teatro dizia ser bom a atores. Mas eu vivia em uma família para a qual Deus resolveria os problemas e bastaria a gente se perdoar que estava tudo certo. Minhas sessões começaram três anos atrás, depois que me separei pela primeira vez. Moramos juntos por cinco anos e fomos casados durante um ano e meio. Depois de resolver o bloco separação, segui com a análise, para dar conta de todo o resto. E consegui expurgar a culpa que sentia sobre tudo o que acontecia comigo e estava ligado ao fato de eu ser criada em um colégio cristão.
A culpa aprisiona? Sim. É uma questão cristã e também do feminino. A mulher parece um ser criado para carregar a culpa do mundo em todas as modalidades: mãe, esposa, profissional. O cardápio é variado. Na internet, os comentários dos caras sobre personagens femininos são no sentido de culpá-las o tempo inteiro. O cara separou? A mulher que o levou a esse caminho. A gente não é babá de marmanjo, pô! As pessoas deveriam ter responsabilidade sobre as suas vidas, mas não parecem dispostas a trabalhar seus pensamentos. Daí o medo da terapia. Vivemos um momento perigoso, no qual os diálogos estão prontos e as pessoas se comunicam por memes, textos de outros. E as coisas ficam representadas nesses novos formatos. A gente criou um mundo com essa estrutura. O pobre acha que irá morrer assim. E o rico quer manter seus privilégios até morrer mesmo achando que é qualidade de vida o fato de ele andar dentro de carro blindado. Não consegue enxergar a relação disso com um abismo social. Mas ele pode ser transformado.
Créditos
Imagem principal: Bispo
Fotos: Bispo