Em pedaços de papel, despejamos impressões, angústias e as coisas simples da vida
Em pedaços de papel, colamos, desenhamos, despejamos impressões, angústias e as coisas simples da vida
por Denise Gallo
Mulheres e registros íntimos têm uma relação de longa data. Foi na Idade Média que tudo começou. Elas resolveram escrever sobre seu mundo interno e nunca mais pararam. Colecionaram diários e cartas não remetidas, colaram pedaços do cotidiano em agendas gorduchas, desabafaram com papel e lápis na mão.
Em tempos de blogs e orkuts, muitas mulheres ainda cultivam cadernos-objeto como suporte para registros pessoais. Minha amiga Flavia Renault, artista plástica, diz que escrever é uma forma de segurar as impressões, antes que elas escapem ou se diluam na memória. Pode ser uma palavra, uma lembrança, uma receita. Olhar para seus cadernos, anos depois, é revisitar fases inteiras da sua vida.
Construir cadernos assim envolve certo ritual. Há o tempo mais lento da escrita manual, o som do lápis no papel, o movimento dos desenhos. A redatora publicitária Alessandra Pereira, outra amiga inspirada, vive esse ritual diariamente. Seus cadernos são preenchidos enquanto sua mente se esvazia, numa quase meditação. São muitos cadernos e todos parecem grávidos. Desenhos, observações, aflições e muitas consultas ao I Ching.
Folhas com alma
Existe também o momento da chegada de um novo caderno. Escolher a capa, o tamanho, se vai levar na bolsa ou não. Para a estilista Karlla Girotto, a primeira página é sempre difícil. Devidamente pulada, ela começa a nova relação que, já sabe, será intensa. Os cadernos são a alma do seu processo criativo e onde ficam registrados os fragmentos das suas inspirações. Com o tempo, os desenhos foram ganhando espaço e Karlla se separou de seu caderno só de escrita. Sem litígio. Ainda mantém o último com páginas em branco, esperando por algum tipo de reconciliação.
Para mim, cada novo caderno sempre foi um oceano inexplorado de possibilidades. Agora conseguirei me expressar, pensava. Finalmente vou resgatar do meu mundo a verdade que transformará minha vida. Pobre caderno, quanta expectativa. Imaginava-me enchendo as páginas com frases inspiradas e poesias tocantes. Pensava em aquarelas e bordados para ilustrar minha aventura interior.
Acontece que eu nunca fui minimamente talentosa para desenhos ou aquarelas. E poesia definitivamente não é meu forte. Assim, inibida diante de projetos tão exuberantes, acabava guardando o novo caderno ao lado dos demais. Lindos e em branco. Até que, certo dia, precisei exorcizar uns demônios e fiquei com medo de quebrar o teclado do computador, tamanha raiva que sentia. Sem pensar em patchworks, até porque, naquele momento, o único retalho ali era eu mesma, lancei mão de um dos cadernos, que esperavam por minha libertação. Funcionou. Não sei se foi o papel, o lápis ou a raiva, mas, depois desse dia, em tudo diferente do que eu havia planejado, encontrei meu próprio jeito de habitá-los. E, quem diria, de vez em quando até saem uns desenhos…
1 O mais visceral dos cadernos, Diary of Frida Kahlo, editora Abrams, www.livrariacultura.com.br 2 A editora convidada Denise Gallo habita cadernos com seu universo particular 3 Para caprichar no seu, inspiração no Altered Books Workshop, editora North Light Books, www.livrariacultura.com.br 4 A estilista Karlla Girotto está sempre com seus cadernos, onde coleciona matéria-prima para suas criações 5 A artista plástica Flavia Renault registra momentos, idéias e impressões 6 Mais cadernos de Denise Gallo 7 A redatora Alessandra Pereira faz cadernos como um exercício de meditação