O Brasil não tem política pública para a pessoa com autismo. E a responsabilidade de reverter essa situação está em minhas mãos
Imagine-se desembarcando na China ou no Cazaquistão ou numa cidade inusitada, sem domínio de nenhuma língua que possa te auxiliar, sem intimidade ou saber, mesmo que superficial, da cultura.
Agora pense que você não consegue produzir nenhum gesto ou expressão facial como apoio para comunicação. Mas não estamos falando de uma tentativa de gesticulação sem sucesso como a minha, por conta de uma paralisia física, já que a intenção do movimento nunca me deixou. Estou falando da sensação de não encontrar no próprio repertório essas ações. Complete isso com a impossibilidade de compartilhar emoções e diferenciar pessoas. E, para aguçar mais ainda o sentimento de exclusão do planeta, constate o não uso da imaginação e da imitação.
Essa é uma descrição típica de manifestações do universo de uma pessoa com autismo. Para você contextualizar melhor o não simbolizar, a expressão “vai chover canivetes”, por exemplo, já fez crianças autistas se esconderem embaixo da mesa, assim como, em uma conversa informal, a jovem autista perguntou a idade da professora, que respondeu: “Chuta”. A jovem, então, deu-lhe um chute na canela. A pessoa com autismo não pensa de maneira abstrata, só concreta.
Outra característica é a ecolalia, que é a repetição de frases ouvidas recentemente ou há algum tempo. Também podemos citar a obstinação por um determinado assunto, como um rapaz que conheci certo dia na AMA (Associação de Amigos do Autista). Depois de ter sido apresentada como deputada, ele se aproximou e disse: “Sou obcecado por transporte, o que você vai fazer pra melhorar o transporte?”. Ainda conheci um jovem que aprendeu inglês por causa de sua fixação por mitologia grega. Levamos em consideração que todos esses casos só podem ocorrer com os verbais, pois os não verbais nem adquirem a fala, muitas vezes, por consequência do diagnóstico tardio.
Inconformismo
O autismo é um distúrbio no desenvolvimento infantil com impacto gigantesco na interação social, na comunicação, no aprendizado e na capacidade de adaptação.
A síndrome de Asperger e o autismo foram identificados na Áustria, em 1943-44. No entanto, apenas em 2009 novos estudos demonstraram que a cada 150 crianças nascidas uma tem autismo (Fombonne).
Fui designada relatora de um projeto de lei que institui uma política nacional para pessoas com transtorno do espectro autista. Só há 18 anos o Brasil teve sua primeira associação para o autismo, o que justifica o pouco conhecimento na área, além das faces ocultas que podem ter por trás da beleza de uma criança com autismo. Essa criança não é vista como uma pessoa com deficiência intelectual, pois não há uma linearidade na sua aquisição cognitiva. Isto é, uma estética toda harmoniosa não revela o padrão irregular do desenvolvimento, que muitas vezes pode demonstrar altas habilidades e grandes dificuldades.
Tenho recebido relatos e apelos de familiares de pessoas com autismo de todo o Brasil. O desespero dos pais é tal, que a única coisa que me pedem é celeridade na relatoria. Não querem mexer no texto, pois qualquer alteração que eu faça implicará nova tramitação. E para quem já esperou uma vida cheia de “nãos”, somada à fama de descompromisso do Congresso Nacional, essa pressa é justificável, assim como a indignação por não encontrarem um atendimento de saúde com profissionais treinados e experientes.
Esses pais são inconformados por se depararem com as portas da educação trancadas. Quando abertas, na maioria das vezes, expõem uma didática inócua e ineficiente para um autista. Pais tristes e frustrados por experimentarem a falta de diagnóstico precoce, tratamento multidisciplinar e adequado, transporte, trabalho, entretenimento, cultura, esporte... O Censo do IBGE nunca perguntou se tem autista na residência. Muitos morreram sem saber o que tinham e nunca foram considerados pessoas com deficiência.
Ou seja, definitivamente, o Brasil não tem política pública para a pessoa com autismo. E, neste momento, a responsabilidade de reverter essa situação está em minhas mãos.
Mara Gabrilli, 44 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br