A (falta de) presença feminina no cinema e os possíveis caminhos para mudar esse cenário
Tente se lembrar do último filme ou série que você viu: a obra tem pelo menos duas personagens femininas? Elas conversam entre si? Agora ficou mais difícil: o papo não é sobre homem? Essas três exigências aparentemente simples fazem parte do chamado teste de Bechdel, que nasceu de uma tirinha criada pela cartunista Alison Bechdel em 1985. No quadrinho, Alison ironizava as produções hollywoodianas, cujos personagens femininos eram sempre estereotipados e rasos. A piada acabou virando uma métrica importante do universo do cinema – com resultados, infelizmente, nada engraçados: a maior parte dos filmes não passa no teste.
E o que se vê na tela reflete, historicamente, uma realidade dos bastidores: a baixa representatividade de mulheres na direção e em outros cargos principalmente artísticos dentro do ecossistema de produção audiovisual – dos 250 maiores filmes de 2017, por exemplo, apenas 18% deles tiveram mulheres em cargos relevantes e apenas 9% foram dirigidos por mulheres. "Essa relação entre o protagonismo feminino nas telas e a presença de mulheres nas áreas criativas, como direção e roteiro, era uma percepção que se concretizou agora no último Oscar, que é o símbolo mais popular e comercial do cinema no mundo", diz Barbara Sturm, diretora de conteúdo da Elo Company, produtora e distribuidora de filmes e séries nacionais fundada em 2005 por Flavia Feffer, Sabrina Wagon e Ruben Feffer. "Quando você tem roteiristas, produtoras e diretoras mulheres, fomenta também protagonistas femininas e que não estão dentro do clichê esperado das mulheres domesticadas, princesas românticas, belas, recatadas e do lar."
Um negócio lucrativo
É importante dizer: filmes feitos por mulheres também dão dinheiro – muito dinheiro. "Frozen 2", por exemplo, co-dirigido por uma mulher, Jennifer Lee, e com uma protagonista desinteressada em príncipes encantados, rompendo a narrativa tradicional das princesas Disney, arrecadou mais de 1 bilhão de dólares.
Esse foi um dos argumentos de Barbara para criar, em 2018, o Selo Elas, braço da Elo Company que fomenta a produção e a distribuição de filmes dirigidos por mulheres. "Estruturei o selo e vendi sua proposta dentro da Elo justamente com base nessa consolidação do valor crítico e artístico, validado por festivais e prêmios, e das receitas. Não é só sobre abrir o mercado para as mulheres, é também sobre negócios", conta Barbara. "Nós escolhemos histórias que 'importam' e que tragam mensagens além do entretenimento. Esse sempre foi nosso DNA. A criação do Selo foi uma das formas de materializar esse objetivo, juntando não somente nossos ideias, mas uma clara demanda de mercado", complementa Flavia Feffer, uma das fundadoras da Elo Company.
O Selo Elas também foi um passo natural para a produtora e distribuidora, que, fundada em 2005, é liderada majoritariamente por mulheres e sempre teve como proposta dar espaço à diversidade em toda a cadeia da produção – não só de gênero, mas de todas as minorias sociais, e inclusive a geográfica, buscando histórias fora do eixo Rio-São Paulo. "Temos polos criativos incríveis no Nordeste e Sul. O sertanejo é o gênero musical mais ouvido no nosso país, isso já demonstra que o Brasil é muito maior que a Faria Lima e o Leblon", diz Flavia.
Responsável pela curadoria dos projetos da casa – e sempre com esse olhar para a diversidade –, Barbara se aprofundou nas pesquisas sobre o mercado e se deparou com um cenário muito pouco receptivo às mulheres, a despeito do quanto sociedade, instituições e corporações busquem abarcar a diversidade. "No Brasil, ser mulher e dirigir seu primeiro filme é muito difícil, o segundo, então, praticamente impossível", ela comenta. Os dados comprovam: de acordo com levantamento da Ancine (Agência Nacional do Cinema), em 2018, apenas 19% dos filmes brasileiros foram dirigidos por mulheres.
O que é curioso, já que nas áreas de produção executiva e distribuição, as mulheres, quando não maioria, compartilham ao menos metade do mercado com os homens. "O mercado audiovisual tem forte presença feminina em especial atrás das telas e em cargos executivos. Além de produtoras executivas, somos liderança em canais e plataformas. O gap está mesmo na direção e no que vemos nas telas, as histórias que são contadas", diz Flavia, sublinhando que, no geral, o mercado criativo ainda está concentrado nas mãos dos homens, que tendem a fazer filmes sobre homens para homens.
Claro, há um movimento que indica alguma mudança de olhar, com diretores, inclusive no Brasil, por trás de obras sensíveis com protagonistas mulheres complexas, como cita Barbara, "A Vida Invisível" (2019), de Karim Aïnouz. Mas ainda é uma lógica endurecida, na qual as mulheres ocupam, proporcionalmente, muito pouco espaço. Por isso, a missão por trás de iniciativas como o Selo Elas é, mais do que ampliar as oportunidades para mulheres, naturalizar a presença feminina no setor. "Eu não queria criar uma cota dentro da Elo, com xis projetos por ano – isso o mercado já faz. A ideia é pegar projetos que já contratamos e, dentre eles, os que pertencerem a mulheres tornam-se elegíveis para o selo. Ou seja, a gente já tinha um interesse na distribuição daquele projeto, com o Elas iremos potencializá-lo. E entendi que, para isso, precisava montar uma equipe mais robusta", explica Barbara.
O Selo Elas seleciona anualmente projetos em desenvolvimento de diretoras mulheres em diversos estágios da carreira, oferecendo a elas consultorias especializadas. São 23 consultores voluntários, com larga experiência na indústria audiovisual e que se dividem nas seguintes áreas: artísticas (diretores, roteiristas, montadores, músicos), jurídicas (advogados) e executivas (produtores e executivos de programação e marketing). Até hoje, o Elas já atendeu 37 projetos, sendo 16 deles fora do eixo sudestino. Nestes três anos, já foram lançados cinco longas e mais nove estão em fase de pós-produção.
A iniciativa também promove, desde o ano passado, o Prêmio Selo Elas Cabíria, uma parceria entre Elo Company, Cabíria e Telecine. "Com a paralisação do setor no ano passado por causa da pandemia, decidimos juntar forças e nos unir ao Cabíria, que é uma premiação para roteiristas mulheres, e contamos ainda com o apoio do Telecine", explica Barbara. O prêmio foi destinado para roteiros finalistas das edições anteriores do Cabíria e o projeto contemplado foi “Avenida Beira-Mar”, ficção sobre uma criança trans que terá contratos de produção e distribuição da Elo Company, participação no Selo Elas 2021 e contrato de pré-licenciamento com o Telecine. "Trabalhamos a diversidade para o grande público unindo, assim, propósito, relevância e sustentabilidade do negócio", diz Ruben Feffer, sócio e cofundador da Elo.
"Eu tenho muito orgulho da Elo ter chegado onde está hoje, conhecendo todo o percurso desde o início. Antigamente tínhamos tantos sonhos com relação a empresa, e uma postura tão inovadora que grande parte do tempo de nossas reuniões eram tomadas explicando “afinal, o que a Elo faz?”. Hoje temos um nome, no caso da empresa, mas principalmente os nomes de várias pessoas integrantes do nosso time, reconhecidas como sendo líderes no mercado, inovadoras e sólidas. E líderes numa postura de dar voz, espaço, e empoderamento das mulheres, do feminino, da diversidade, das várias culturas, tendencias, etnias e linguagens do nosso audiovisual e efetivamente projetar essa melhor imagem do Brasil por todo o mundo", complementa Ruben.
Quando formos todos iguais
Com tudo isso, dá para afirmar: o mercado está mudando. O Oscar 2021 está aí, com recordes femininos nas premiações, para provar que estamos evoluindo. Mas ainda precisamos cobrir uma longa caminhada para chegar num lugar em que essa discussão nem será mais necessária – que a presença de mulheres no cinema não será questionada, mas uma realidade tão palpável e natural quanto a presença de homens.
Elas não vão mais "roubar a cena" – para fazer uso de uma expressão muitas vezes inadequada – porque vão pertencer igualmente. E isso não é apenas sobre as mulheres por trás das câmeras, mas sobre as narrativas que são contadas há gerações. Precisamos naturalizar protagonistas mulheres cuja jornada não se resuma a
conquistar o príncipe, superar um pé na bunda ou formar uma família feliz. É uma mudança de cultura muito forte tanto do lado de quem produz quanto do lado de quem consome, já que ainda há muitas gerações de telespectadores que cresceram com esse roteiro hollywoodiano romântico. "A sociedade, no Brasil e no mundo, é diversa, e o público também quer ver o seu modo de vida e os seus conflitos pessoais refletidos na tela", diz Flavia. Portanto, é um desafio dentro da indústria mudar essas narrativas e acostumar o olhar da audiência a essas novas histórias – que, a bem da verdade, não são novas, só não estavam sendo contadas.
Se depender do selo Elas e de outras iniciativas do cinema – como as da própria Ancine, que lança editais com recortes específicos, como produções estreantes, de pessoas negras e mulheres indígenas –, não vão faltar oportunidades para que mulheres sejam protagonistas de suas histórias – nas telas ou por trás delas.
Créditos
Imagem principal: Cena do filme "Mulher Oceano" da diretora Djin Sganzerla