A cineasta Beatriz Seigner fala sobre o poder de transformar o mundo
Escrevo sob o impacto de um dos mais belos filmes que vi recentemente: Cesar deve morrer, dirigido pelos irmãos Taviani, ainda em cartaz, por sorte. No filme, um grupo de teatro é formado dentro do presídio de segurança máxima de Rebibbia, em Roma, por pessoas que cometeram os mais diversos crimes, de homicídio, narcotráfico ao envolvimento com a máfia italiana. O filme todo é atuado pelos próprios presidiários, muitos condenados à prisão perpétua.
Acompanhamos então a montagem do clássico de Shakespeare Julio Cesar, e aqueles homens, que deveríamos temer, pois em algum momento de suas vidas perderam a cabeça, mataram alguém, participaram de organizações criminosas, aqueles fora da lei, incorporam as palavras e os conflitos de outros assassinos históricos, como Brutus, e outros homens honrados do Senado romano. E, à medida que os pensamentos, as ações e os sentimentos daqueles personagens vão ganhando forma em seus corpos e suas vozes, eles vão sendo expressos, vão ganhando nome, percebemos o quão próximo estamos de seus conflitos, tanto entre presos e nós, espectadores “livres”, quanto entre homens vivendo numa sociedade de séculos atrás e nós, imersos na organização social de hoje.
Em determinado momento, Cosimo Rega, interpretando Cassio, se perde numa fala e, pedindo desculpas, diz algo como “é que esta Roma de Shakespeare e Cesar se parece tanto com minha cidadezinha natal”. Em outro momento, Salvatore Striano, interpretando Brutus, não consegue falar outras linhas, pois sempre que se aproxima delas lhe vem a memória nítida um de seus companheiros do contrabando de cigarros, que havia lhe dito algo como “se ao menos tudo isso pudesse se resolver sem que precisássemos matar ninguém”.
lmpulsos
Pessoas que num ato, em um segundo, passaram para o lado de lá, e nenhuma força sobrenatural os deteve. Ao mesmo tempo, enquanto se desenrola a montagem da peça defronte a nossos olhos, vemos as transformações pelas quais esses seres humanos vão passando, ao conseguirem reviver e expressar aquilo que viveram. Parece que estoura uma rolha de uma garrafa interna neles, e se desabrocham ali homens que brincam, que refletem, que criam, que passam a se conhecer mais, mesmo com sua liberdade tão cerceada. Homens que começam a adquirir ferramentas de autocontrole, de sublimação de seus impulsos: a arte.
Toco nesses temas, e acredito que esse filme tenha me impressionado tanto, e tão positivamente, pois, para quem trabalha com arte e, talvez, sobretudo com o cinema, é comum o questionamento de por que as produções artísticas devem ser subsidiadas pelo Estado, assim como educação, saúde, e outros bens que nos são essenciais tanto como sociedade quanto como indivíduos, para o exercício pleno de nossa existência.
Quais as funções sociais da arte? Por que a sociedade e as pessoas precisam dela, desde a época das cavernas? Será que é só para gerar empregos, impostos e lucros, como pensam alguns? Acredito que, para ser útil e saudável ao coletivo, a arte deve ser livre para questionar os valores vigentes em qualquer sociedade, a qualquer tempo. Inclusive o consumismo e o capitalismo, que têm dominado os hábitos culturais contemporâneos.
Se formos depender sempre dos patrocínios de empresas, jamais poderemos questioná-las. Se formos depender apenas de bilheteria, e portanto de alta verba para publicidade, jamais poderemos trazer à tona questionamentos que muitas vezes pulsam nas camadas subterrâneas da psique humana, em suas engrenagens de jogos de poder social, inconscientes, muitas vezes, até então para o próprio público.
Filme, leva eu
E é tão bom entrar num filme, numa peça, num espetáculo de dança, numa galeriaocupação de artes plásticas, num concertoshow de música, entrar num livro e deparar com um “nossa, eu nunca havia pensado sobre isso, desta maneira, antes, na vida”.
Segundo alguns filósofos modernos, entre eles Nietzsche, a arte é o futuro que se infiltra no presente. E o artista, aquele cuja expressão o liberta de sua dor. E assim, talvez, liberte também o outro, ao compartilhar aquela experiência de vida, artisticamente. Segundo Marx, a arte é o próprio reino da liberdade.
O que me faz lembrar que há 130 anos morria esse pensador barbudo, no dia 14 de março. Segundo Eduardo Galeano, em seu livro Os filhos dos dias, havia uma “multidão de 11 pessoas” em seu enterro. Contando com o coveiro. Mesmo essa “multidão” sendo tão seleta, mesmo sendo raras as pessoas que leram, realmente, O capital, quantas vidas não foram influenciadas por essa obra? Em todo o planeta? Há mais de cem anos? Contínua e progressivamente?
Em algum momento esse livro foi considerado um best-seller ou blockbuster? É necessário isso para realmente ter impacto social? No trailer do filme Cesar deve morrer, uma frase fica ecoando na cabeça: “A arte é a melhor expressão da liberdade. Às vezes, a única”. Desfrutem-na. Que vale a pena. Para que os padrões psíquicos e grilhões sociais que nos prendem, a todos, sejam, finalmente, quebrados.