Aquela noite em cima da pedra

por Milly Lacombe
Tpm #87

Não sei onde estava com a cabeça quando sugeri que fôssemos ao terreno àquela hora da noite

 

No meio do mato dentro de uma noite muito escura eu entendi que meu maior medo não era de assombrações ou bichos selvagens, mas de ter você apenas por uma noite

Eu não sei onde estava com a cabeça quando sugeri que você e eu fôssemos ao terreno àquela hora da noite. É que, nos meus devaneios, essa seria uma noite repleta de estrelas e de lua cheia. Aí você me pergunta se eu tive a ideia de olhar o calendário para checar a lua, ou o clima para ver se haveria estrelas. E eu digo que não há ciência que possa adiar um gesto de amor. Então, simplesmente não olhei nada disso e continuei a viver dentro de meus sonhos, onde normalmente me saio melhor.

E esse sonho era especialmente bonito. Eu tinha ido comprar seu presente com muita antecedência e, dessa vez, consegui guardar segredo e esconder ele tão bem que nem durante suas nervosas arrumações de domingo à tarde o pacotinho veio à tona. A ideia era entregá-lo quando estivéssemos sozinhas lá no terreno. Tudo estava dando certo e eu comecei a me sentir poderosa, como me sentia quando era pequena e, entre muitos homens, era capaz de ser o melhor jogador em campo, para orgulho de meu pai.
Entorpecida por essa superioridade magnânima que naturalmente só eu via, levei você para um fim de semana na montanha. Exatamente no lugar em que você comprou o terreno onde, um dia, construiremos nossa casa e para onde, para sempre, fugiremos. O terreno está lá, encostado às estrelas, enorme, vazio.
Minha brilhante iniciativa era dirigir até ele depois do jantar que faríamos no pequeno vilarejo, conduzir você até a pedra sobre a qual ergueremos nosso refúgio, garrafa de vinho na mão, encher os dois copos que ia levar, fazer um brinde à sorte de ter encontrado você e, só então, tirar do meu bolso o presente. Não me importei com a distância de quase 11 quilômetros entre o vilarejo e o terreno. Nem com a estrada de terra superíngreme, nem com o isolamento da área, nem com a hipótese de faltarem lua e estrelas.

Coragem da ignorância
Também não me importei com sua incredulidade quando terminamos de jantar e eu insisti para que fôssemos ao terreno em vez de voltarmos à pousada. Claro que você, sabendo que um de meus grandes prazeres na vida é jantar e voltar correndo para a cama, estranhou que naquela exata noite eu quisesse uma aventura. “Tá tarde demais pra gente ir até o terreno. Vamos amanhã”, você disse. Mas eu me saí com a que já estava reservada: ainda não tínhamos visto o terreno à noite. Eu tinha outros bons argumentos preparados porque já aprendi que, com você, é bom estocar réplicas e tréplicas, mas dessa vez não foi preciso.

Tínhamos nos afastado alguns poucos quilômetros do vilarejo e eu comecei a entender o que estava acontecendo: você e eu completamente sozinhas naquela região remota e escura. Não havia estrelas, muito menos lua. Nosso carro era, para dizer o mínimo, absolutamente inadequado à ocasião. No caminho haveria buracos, terra fofa, aclives acentuados. Meu coração começou a bater mais rápido, talvez porque ele sempre bata assim quando você está do meu lado, mas também porque sou certamente a pessoa mais medrosa do universo. E se furasse um pneu? Que tipo de bichos estariam à espreita? E assombrações? Discos voadores? Olhei para você, sentada no banco do passageiro, para dizer que era mesmo melhor ir no dia seguinte, mas antes que a primeira sílaba saísse da minha boca você disse que aquele era, afinal, um programa inusitado, e que estava muito feliz com minha audácia. Podemos trocar a palavra audácia por coragem da ignorância e vamos chegar perto do que me moveu até ali.

Você colocou uma música, abriu a janela, acendeu um cigarro. Parecia mais re­laxada do que nunca. Enquanto isso, eu começava a ouvir barulhos estranhos, a ver coisas esquisitas, a notar que o céu ficava mais escuro a cada quilômetro percorrido.

Depois de uma eternidade, chegamos ao terreno. Movida pela palavra audácia associada a minha imagem na sua percepção, tomei coragem e desci do carro. Para chegar à pedra na qual, em meus sonhos, eu entregava a você o presente, teríamos que andar no meio do mato naquela escuridão. Eu já nem mais falava de tanto medo. Mas você, extasiada pelo programa, não ouvia meu silêncio. De mãos da­das – você, delicadamente, segurando a minha, e eu, não sei como você não notou, apertando a sua como se ela fosse a última salvação – fomos subindo a pé. Chegamos à pedra, sentamos, você respirou fundo. Tremendo, enchi de vinho os dois copinhos de plástico que tinha levado comigo. Você puxou o brinde que, em meus sonhos, era puxado por mim. Ainda catatônica de pavor, não fui capaz de lembrar o que ia dizer. Você disse que me amava e eu respondi: “Péra! Péra! Vo­cê ouviu isso? Ouviu? Veio do meio do mato!”. Você disse que não tinha ouvido nada e apontou, lá embaixo, as luzes de uma cidade. Me perguntou que cidade era aquela e eu respondi: “Você foi picada? Eu acho que acabei de ser picada! O que pode ter sido?”. Você deu um gole em seu vinho, eu virei o meu goela abaixo. Nessa hora, coloquei a mão trêmula no bolso e tirei o presente. Quando estendi meus bracinhos gelados de medo em sua direção, você começou a chorar. E eu pensei: nunca mais sairemos daqui. Você disse que aquele era o momento mais bonito da sua vida, que nunca tinha amado assim, e eu respondi: “Macacos! São macacos! Você acha que aqui tem mesmo macacos como dizem? Eles podem atacar?”. Você me abraçou e eu achei que ia cair da pedra no abismo. Abracei você, como sempre faço, do jeito mais apertado que posso, mas dessa vez era para salvar minha vida – o que, de verdade, talvez não seja diferente das outras vezes que abraço você. Assim, coladas uma à outra, ficamos por alguns minutos, em cima da pedra sobre a qual ergueremos nosso casulo.

Assombrações
Quando nos afastamos, eu enxerguei você. Meu deus, como você é bonita. Em êxtase diante de tanta beleza, consegui esquecer que estava com medo. E lembrei que medo mesmo eu senti quando achei, um dia, que teria você apenas por uma noite. Medo mesmo eu senti quando soube que tinha encontrado o amor da minha vida e que ele não tinha me visto passar. Medo mesmo eu senti quando imaginei como seria a vida sem você do meu lado.

Envolvi seu rosto em minhas mãos, como sempre faço, e disse que te amava. Você me deu um beijo bem ali onde um dia subiremos nosso cantinho. Meu sonho – mais um – tinha virado realidade. Mas, porque o que somos na essência nunca nos abandona por completo, lembrei que estava no meio do mato escuro a 11 quilômetros do primeiro sinal de civilização e fiz a única coisa que podia fazer naquela situação. Perguntei se você queria fazer uma pequena corrida de volta até o carro. Você riu. Levantando enquanto olhava ao redor, você disse que aquela era a vista mais linda do mundo. E eu, fixada em seus movimentos, sempre tão harmônicos, vendo você levantar e crescer diante de meus olhos, concordei. De fato, essa é a melhor paisagem que já vi. De mãos dadas, você me levou de volta para o carro e, como faz todas as noites, para a cama.

A carioca Milly Lacombe, 41 anos, é jornalista. Seu e-mail: milly@trip.com.br

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