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Anarkia Boladona

por Natacha Cortêz

Escolhida como uma das 150 mulheres que agitam o mundo, Panmela Castro usa o grafite como voz contra a violência doméstica

Panmela Castro, 31, é carioca, nascida e criada na Penha, subúrbio do Rio de Janeiro. Com o "codinome de guerra" Anarkia Boladona assina os grafites que espalha desde 2006 pelos muros do Rio. Os desenhos são sua voz, estilo de vida e força de trabalho. Com eles trata de temas como sexualidade, condição feminina, igualdade e, especialmente, de violência doméstica. "Vivo o grafite 24 horas por dia”, diz.

Através dos desenhos começou o "Grafite Contra a Violência Doméstica", projeto de conscientização de comunidades carentes de sua cidade, que de lá foi levado para outras. Por causa dele foi escolhida este ano pelo Daily Beast, site do grupo da revista norte-americana Newsweek, umas das 150 mulheres que agitam o mundo. Na lista, a outra brasileira é a presidenta Dilma Roussef. Ainda em 2012 levou o  DVF Awards, prêmio anual dado a mulheres que lutam para diminuir a violência e a injustiça de gênero, criado pela estilista belga Diane Von Furstenberg. Oprah Winfrey foi uma das homenageadas da noite.

Na adolescência pichava pra contestar os valores de sua própria criação, como ela define: "rígida e moralista". "Aquele ato de rebeldia que a princípio questionava as leis da minha casa reflete o grafite de hoje e me levou às questões feministas que trato no meu trabalho”, conta. Trocar a pichação pelo grafite foi uma forma propor uma manifestação que pudesse ser aceita e vista por todos. “Chegou o momento que eu não queria ir contra o mundo. Eu queria fazer parte dele. Mas no meu universo, naquela época, fazia muito sentido pichar, depois não mais. Eu já tinha a liberdade pela qual contestei.”

Conversamos com Panmela sobre o grafite, sua trajetória na arte de rua e sobre seus projetos e os temas que trata neles, princialmente ideias feministas. 

Tpm. Como começou a grafitar? E por que escolheu o grafite como voz?
Panmela. O grafite entrou mesmo na minha vida por causa do meio em que cresci. Não tinha como fugir. Ele é muito presente em lugares mais marginalizados. Nasceu porque é expressão daquele povo. Se eu quisesse ser ouvida, nas artes plásticas ele é forma mais legítima da periferia. É minha voz porque faz muito sentido com a vida que levo, minha realidade. Através dele digo tudo o que acredito.

A partir de que momento você passou a usar o nome Anarkia Boladona? E por que o escolheu? Anarkia pra mim é sinônimo de liberdade. Por causa da pichação veio o nome, eu precisava de uma identificação. E queria chocar. O Boladona tem tudo a ver com o universo de onde vim. Da coisa do funk e das gírias da época na qual comecei a pichar. Mas antes de tudo, é uma representação de onde vim. Sou suburbana, minhas raízes então no subúrbio.

Então não muda muito o que você queria dizer com a pichação e diz agora com o grafite, né? A diferença é que o grafite te possibilita uma aceitação social e até por isso deu visibilidade pro seu trabalho. É isso? É sim. A pichação era um movimento individual. Com o grafite consegui comunicar angústias coletivas. Mas os dois trazem essa vontade de gritar. Antes era por mim, agora por nós.

 

"A pichação era um movimento individual. Com o grafite consegui comunicar angústias coletivas. Mas os dois trazem essa vontade de gritar"

 

E aí surgiu o projeto Grafiteiras pela Lei Maria da Penha? Nasceu juntamente com sua vontade de falar pelo coletivo? Isso. Foi em 2008, dois anos depois de eu começar a grafitar. Hoje o nome mudou, se chama Grafite Contra a Violência Doméstica. 

Me conta mais sobre o projeto. Como ele funciona?
Vamos até comunidades carentes. E vamos pra falar sobre a lei, mas também sobre a posição da mulher no mundo. Fazemos oficinas, teatros, debates. Comentamos seus direitos, explicamos e ilustramos o que elas podem aceitar e o que não devem. Fazemos não só no Brasil, já fomos para Nova Iorque, Paris. Vamos pra onde chamarem. Quero falar sobre a condição da mulher, não importa onde. E sempre tem o grafite depois. Eu, com ajuda delas, pinto um mural, que fica de registro daquele encontro.

E o que sente nesses encontros? Existe muita ignorância por parte delas? Elas realmente não sabem que podem ser protegidas? Elas se sentem culpadas? Sim! Elas se perguntam o que fizeram pra sofrer a agressão. Nas comunidades mais pobres, o machismo ainda é muito entranhado. A maioria das mulheres não saem mesmo de lá e vivem muito conforme as leis daqueles lugares. Elas geralmente não conhecem a Lei Maria da Penha e não sabem de seus direitos. Acreditam que merecem a agressão porque provocam ela de alguma forma. E os lugares que visitamos são violentos, distantes, muito distantes da realidade que vemos na TV, na internet. Favela e comunidade carente é muito diferente do que estamos acostumados. Eles vivem outra história.

E como é a recepção das pessoas desses lugares? Digo, principalmente das famílias das mulheres que participam das oficinas. Na maioria das vezes é difícil. Como você vai dizer pra uma mulher de traficante pra denunciar o cara que a agride? Elas não entendem, eles não aceitam. Como eu disse: é um lugar que tem suas próprias leis. As pessoas de lá não querem saber como funcionam as coisas fora dali. 

E já sofreu ameaças por isso? Por essa incompreensão? Já sim. Tive medo inclusive. Fui perseguida por mais de um ano por um dos maridos. Ele não tinha entendido o que falei pra mulher dele, disse que me achava abusada por interferir no modo que eles viviam. Foi perturbador.

E como elas reagem quando sabem de seus direitos? Concordam, se sentem protegidas ou têm ainda mais medo de reivindicá-los? Sinto da parte delas uma sensação de alívio. Do tipo: “alguém entendeu o que eu pensava. Não era só eu que pensava isso, alguém mais pensava igual.” Daí depende muito. Tem mulher que se revolta, que muda as atitudes. Tem outras que o processo é muito mais lento. Tem as que continuam com muito medo, e que não se manifestam de forma alguma. Mas acho que no fim das contas, o que importa é que elas agora sabem, que ouviram e que podem contar, mesmo que em segredo, à outras. Agora que têm consciência, podem mudar a criação de seus filhos e suas filhas.

 

"Nas comunidades mais pobres o machismo ainda é muito entranhado. A maioria das mulheres não saem mesmo de lá e vivem muito conforme as leis daqueles lugares. Elas geralmente não conhecem a Lei Maria da Penha e não sabem de seus direitos. Acreditam que merecem a agressão porque provocam ela de alguma forma"



Muitos artistas expressam seus dramas e angústias através dos seus trabalhos. Você começou a pichar por um motivo pessoal, mas e o grafite e o tema violência doméstica, também foi assim? Você sofreu violência doméstica? Não. Mas convivi com ela, dentro da minha família e entre minhas amigas. Acredito que nenhuma mulher está livre dela. É um problema cultural no Brasil que independe de valores sócio econômicos. A própria Maria da Penha, a mulher que deu nome à lei, no caso dela o agressor era professor universitário e marido. Como eu disse: violência não escolhe classe social.

Você acompanhou o surgimento da Lei Maria da Penha e trabalha falando dela desde então. Sente que algo mudou nesses anos? Com certeza. De observação mesmo. Sinto que hoje existe mais consciência. Os meninos mais novos têm vergonha de dizer que batem nas mulheres, antes eles contavam com naturalidade. Era parte da coisa de exercer o machismo. Óbvio que ainda tá tudo muito devagar, mas vejo sim mudança. Agora que sabem, as mulheres se sentem mais confortáveis de falar sobre o tema, até entre elas. Aos poucos, elas vão entendendo que violência doméstica não é normal não.

E falando em liberdade. Você se sente livre hoje? Pode dizer que o grafite te libertou de certa forma? Sim e não. Tenho várias questões que preciso resolver. Aliso o cabelo, sou loira, descoloro ele. E não vou mentir, estou presa a esteriótipos de estética e beleza. O grafite me libertou porque me deu voz, mas ainda tenho meus traumas. Ainda sou alvo de olhares alheios. Mas claro, luto e pretendo me libertar deles. E depois que sem minha arte não teria nem aberto a boca. Ela me possibilitou assumir de onde vim e enxergar todos os problemas da sociedade que cresci. A mulher precisa ter o direito de decidir a respeito do seu corpo e de sua vida. Hoje luto pra que todas possam, inclusive eu.

Vai lá: www.facebook.com/AnarkiaBoladona / http://anarkiaboladona.tumblr.com

 

Panmela recebendo o prêmio da fundação da estilista Diane Von Fustenberg:

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