por Mara Gabrilli
Tpm #137

Como poderia eu lançar uma biografia sem acessibilidade?

Na semana anterior ao lançamento do meu livro, meus editores informaram que não teríamos versões acessíveis aos deficientes visuais. Como poderia eu lançar uma biografia sem acessibilidade?

Depois de quatro anos de trabalho e trocas muito íntimas com a danada de talentosa da Milly Lacombe, finalmente lançamos o livro Mara Gabrilli – Depois daquele dia, em 17 de outubro. As borboletas na barriga pela emoção da noite de autógrafos acabaram sendo substituídas por nervosismo e frustração na semana anterior ao lançamento, quando os editores me informaram que não teríamos as versões acessíveis a deficientes visuais naquele dia. Desde o início, a minha única exigência tinha sido a total acessibilidade do livro. Como poderia eu, que trabalho diariamente pelos direitos das pessoas com deficiência, lançar uma biografia sem acessibilidade? Como poderia olhar nos olhos dos meus amigos e não pensar no quanto estava falhando?

Cada pessoa cega ou com deficiência visual tem uma forma de ler que mais lhe agrada. Existe o livro que é lido por meio do tato com as letras do alfabeto braile. Outra opção é o audiolivro, no qual o conteúdo do livro é gravado por um ledor. E o livro digital Daisy (sigla em inglês que significa Sistema de Informações Acessível Digital), que permite ao leitor selecionar palavras para saber como se escreve, fazer anotações e marcações. Este foi o formato adotado pelo MEC no Plano Nacional do Livro Didático, por ser reconhecido internacionalmente como o mais moderno em acessibilidade de leitura.

Lembrei de um projeto de lei que passou pela Comissão de Educação na Câmara em que aprendi sobre os griôs – espécie de guardiões da memória de um povo por meio da transmissão oral. Para eles, a palavra é sagrada e, antes de falar, eles precisam aprender a ouvir. De qualquer maneira, seja lendo com os olhos, com as mãos ou com os ouvidos, a leitura traz conhecimento e isso nos dá liberdade. Sobretudo para nos livrar de conceitos errôneos e passar a enxergar as pessoas com deficiência como consumidores, por exemplo. E, é lógico, entender que as pessoas cegas querem comprar e ler seus livros sem depender de ninguém.

Nicho de mercado

Infelizmente, menos de 1% das obras publicadas no mundo é convertida em formatos acessíveis. Para mudar esse quadro, o Tratado de Marrakech, concluído durante a Conferência da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, é um acordo internacional que permite a publicação de obras em braile, Daisy ou áudio sem a autorização do titular de direitos autorais. O Brasil assinou o tratado em 28 de junho, abrindo um importante caminho para ampliar o acesso ao conhecimento.

Segundo o censo do IBGE de 2010, 45 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência e mais da metade tem deficiência visual. Cerca de 6,5 milhões são cegos ou têm grande dificuldade em enxergar. Editores, está na hora de abrir os olhos para quem não enxerga! É um nicho de mercado que quer consumir. E, muitas vezes, a pessoa cega vai comprar o livro acessível (quando há) pela internet e a plataforma usada não é acessível. É como colocar o toalete adaptado no segundo andar de um edifício sem elevador...

O inconformismo e a esperança dão a mim e a tantos “irmãos de situação” coragem e criatividade para buscar novas possibilidades e crescer com elas. Em minha opinião, um livro que não tivesse versão acessível deveria ser recolhido, como foi a biografia do Roberto Carlos. Por que não se discute biografia inacessível junto com a biografia não autorizada? Por que só é importante aquilo que o biografado quer censurar? E a história que o biografado quer mostrar pra todo mundo e que alguns não têm como ler?

(*)Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Pró­ximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br

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