Ganhei tanto dando voz àquelas pessoas e investigando o não óbvio de cada uma delas
Ganhei tanto dando voz àquelas pessoas e investigando o não óbvio de cada uma delas que, em algum lugar do meu mundo afetivo, abrandou-se a pior dor. A dor da perda
Passei alguns dias trabalhando numa feira de tecnologia em reabilitação, inclusão e acessibilidade, a Reatech. É a maior feira desses assuntos na América Latina e acontece todo ano num pavilhão de exposições em São Paulo. Já participei como visitante, como expositora no estande da PPP (ONG que fundei em 1997 e que hoje compõe o programa de atletas do Instituto Mara Gabrilli), pela prefeitura de São Paulo quando era secretária municipal e, desta vez, como apresentadora do programa Derrubando Barreiras – Acesso para Todos, da rádio Eldorado. Há quase dois anos apresento esse programa de quadros e entrevistas. É uma delícia dar voz às pessoas e ainda conhecê-las por entre microfones. O fato de saberem que muita gente irá ouvi-las imprime um formato diferente no pensar e, principalmente, no sentir. A maioria cora e tem voz mais desafinada no princípio. Funciona como um superego ou como uma censura que vai se desfazendo durante o programa, sem nunca acabar.
Durante a feira, entrevistei mais de 50 pessoas que chegavam a fazer fila para falar de seus projetos, experiências, empreitadas. E para tirar fotos. Gente de todo o Brasil, com todo tipo de deficiência ou não, de diversas profissões, mas sempre adorando falar no microfone. Algumas diziam ficar nervosas em entrevistas, mas logo se soltavam e não queriam mais sair dali.
Entrevistei o prefeito de São Paulo, secretários, parlamentares, artistas, atletas, anônimos e celebridades do mundo da inclusão. E eu me sentindo poderosa por poder investigar o não óbvio de cada um.
Num lugar fechado extremamente barulhento de pessoas, motores e música alta distorcendo, não é simples permanecer por horas – ainda mais quando a sua ferramenta de trabalho é a voz do outro.
Fiquei tão abstraída que, ao sair dos corredores de exposições para ir à praça de alimentação, falei para minha assistente me deixar sentar um pouco, pois estava muito cansada. Como se eu tivesse andado a pé por toda a feira e só depois percebesse que estava sentada na cadeira de rodas.
Sem pesar
Pior foi sair da feira e me dar conta de que meu pai estava no hospital e minha mãe viajando. Foi aí que resolvi fazer um telefonema para a Norminha, que deveria estar sozinha em casa. Para o meu desalento, lembrei que ela tinha morrido há dez meses. Foi a maior perda que já tive e foi também a primeira vez que lembrei da minha babá sem pesar no coração. Ri de mim e parecia que ela estava rindo junto. Será que o estágio dessa perda havia mudado naquele dia? Talvez tenha ganhado tanto dando voz àquelas pessoas que, em algum lugar do meu mundo afetivo, abrandou-se a pior dor.
À noite tive um sonho em formato de show. Tudo o que eu dizia era aplaudido por um público grande e não era um discurso, mas uma “fala qualquer”. Entendi que havia tocado no infinito. O som era também de mim mesma, os aplausos eram risos, e as entrevistas eram a criação.
Mara Gabrilli, 40 anos, é publicitária, psicóloga e vereadora por São Paulo. Fundou a ONG Projeto
Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@camara.sp.gov.br
