por Maria Ribeiro
Tpm #155

Sempre tive medo de tudo, e cresci alternando no peito a história de como meus pais se conheceram (a vida é boa), e a de que meu primo tinha se suicidado com 18 (a vida é má)

Eu acordo às 9 da manhã. Quer dizer, primeiro eu acordo às 6, aí eu tomo um Frontal ou um Naldecon Noite e durmo de novo. Às vezes eu demoro a achar a caixinha dos comprimidos e quando isso acontece tudo atrasa porque eu acabo indo fazer xixi, e me angustio com a pilha de cadernos de cultura que eu separei pra ler no banheiro quando tivesse tempo. Então eu fico na dúvida se 6 da manhã é tempo ou insônia, e penso que dúvida é uma coisa que eu tenho mais do que camiseta da Zara. Decido voltar pra cama e penso em cancelar a assinatura dos jornais e em parar de comprar na Zara.

Eu não me cubro, e quase sempre acordo meio gripada. Meio gripada de vez em quando é bom porque dá pra ler sem parar numa terça e não sentir culpa. Eu queria ler sem culpa, mas ler com culpa já é alguma coisa, como ter abolido a manteiga, mas manter a Coca normal. Agora eu como tapioca com requeijão sem lactose e fica um branco bonito na louça de borboleta que era da minha avó. Faço meu expresso em silêncio, olho os jornais que ainda não cancelei e abro o Instagram. Vejo que a Amora tá ouvindo Karina Buhr, que a Rita tá em Punta e que o Freixo tá convocando pra alguma coisa. Faço parte. Posto a foto da Matilde Campilho, tô apaixonada por essa garota. 

Tomo banho pra sair. Preciso depilar e fazer a unha. Decido que vou sempre estar depilada e de unha feita, mas hoje não vai dar tempo. Coloco uma camisa Lacoste pra copiar a Carol, e respondo e-mail. Jô me avisa que a geladeira quebrou. Mas tá na garantia, ela diz. Olho o Instagram pra ver se a Matilde teve muitos likes. 

Saio de casa à 1 hora e não gosto de conversar muito antes disso. Normalmente, saio de jeans, se bem que agora tô numa fase alfaiataria e sapato Oxford, e isso quer dizer que eu fui pro nível dois. Ainda não sei quem eu quero ser, mas, com certeza, é alguém que não usa cetim, que tem coragem pra bancar um chapéu e tá sempre com lingerie boa para uma eventual pegação (ou em caso de atropelamento, como diz a Astrid). 

Entro no carro que nunca tem gasolina, ligo o Metronomy e viro minha bolsa no banco do carona. Lavanda Johnson’s pra dar restart no meio do dia, carregador do iPhone, meia térmica pro cinema, óculos, rímel, base com protetor solar e remédios antiangústia, antienjoo (que as vezes é angústia disfarçada), e antidor de cabeça, que quase sempre é dor de cabeça mesmo. Jurei que trocaria por bananinha, mas o que vejo são dois Toblerones inteiros e cheios de lactose. Mas daqueles pequenos, sabe? 

Já durmo sozinha 

Passo o dia todo tendo ideias de filmes, e também penso muito em sorvete. Marco dentista. Parei de ferir meu couro cabeludo, mas a pele ainda tá ruim. Passo rímel nos cílios de baixo. Eu chego sempre até o erre do Toblerone, mas vou baixar pro bê. E depois bananinha. Aos poucos. Já não como a casca da pizza. E também já durmo sozinha. 

Sempre tive medo de tudo, e cresci alternando no peito a história de como meus pais se conheceram (a vida é boa), e a de que meu primo tinha se suicidado com 18 (a vida é má). Não tem garantia, mas o shuffle mandou uma Madonna que eu sei cantar.

Lembro de quando as aulas de inglês terminavam com letra de música, e decido que vou brincar disso com os meninos. Penso que tudo vai fazer sentido: a geladeira, a Zara, o dentista, o Frontal, o medo, o sapato Oxford e o requeijão.

Tudo vai fazer sentido porque um dia a gente vai pra Ubatuba ler no iPad os cadernos de cultura atrasados, vou estar depilada e de unhas feitas e dividiremos o Toblerone com nossos filhos.

A vida é boa.

Maria Ribeiro, 39 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

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