A vida começa aos 76

por Milly Lacombe
Tpm #129

Tive muitos atritos com minha mãe, mas não posso negar que ela é avó profissional

Tive muitos atritos com minha mãe na juventude, mas não posso negar que ela é avó profissional de talento nato

A festa foi planejada com dez dias de antecedência. A primeira ideia era irmos tomar um brunch em algum restaurante da cidade, mas, depois de alguns telefonemas, descobrimos que os restaurantes da cidade perderam qualquer tipo de conexão com a realidade: um brunch para 16 pessoas – nove adultos e sete crianças – daria para pagar um fim de semana em hotel-fazenda para o mesmo grupo. Então, optamos por um brunch na casa de um de nós quatro. Adriana ofereceu o espaço, dividimos quem levaria o que, e assim foi feito. No sábado 2 de fevereiro, às 11 da manhã, começamos a chegar. Minha mulher e eu com os pães e frios; Nininha com os docinhos e o bolo; Kiko e Fabiana com as bebidas; os anfitriões com os queijos. Ao meio-dia, estávamos todos reunidos, e a matriarca, zanzando de um lado para o outro, não cabia em contentamento. A bagunça era para celebrar seus 76 anos, e sabíamos que passar o dia cercada pelos nove netos – seres humanos oferecidos por minhas irmãs parideiras e por minha cunhada, que contribuiu com as gêmeas – era o único presente possível.

Suando – que é seu estado natural –, Nonna, como minha mãe é conhecida hoje, ia e vinha pela sala pedindo que comêssemos e que bebêssemos, a despeito de já estarmos comendo e bebendo. Comer e beber em grandes quantidades sempre foram coisas muito importantes em minha família; uma mania trazida da Itália por minha avó quando teve que fugir da guerra com os três filhos pequenos no colo rumo ao Rio de Janeiro. Depois de se restabelecer no Brasil, minha avó, hoje mencionada como a Nononna, começou a saudar as pessoas que chegavam a sua casa perguntando o que elas queriam comer e considerava uma ofensa horrorosa quem respondesse “nada, obrigada”.

Por essas razões históricas, lá estávamos nós, ao redor de uma mesa farta, comendo e bebendo para deleite da matriarca. Na varanda, Marcelo, Marcelinho, Kiko e meu objeto de devoção jogavam pebolim. Na cozinha, Nininha, Bruna, Mel e Estela beliscavam os pratos antes de eles irem à mesa. Na sala, Francisco entretia as gêmeas (e provavelmente os vizinhos) assustando-as com uivos de lobo. De dez em dez minutos, Nonna era chacoalhada pelo abraço de um dos nove netos, retribuído com mais beijos e abraços e declarações verbais de amor. Adriana, Nininha, Kiko e eu, os quatro filhos, nunca tivemos com ela essa relação de afeto tão cheia de toque e “eu te amo” para cá e para lá. Não que tivesse nos faltado amor; muito pelo contrário. Mas talvez a maturidade de minha mãe para demonstrar e receber tenha sido completamente alterada com a chegada dos netos. Houve falhas como mãe – e como não haveria? –, mas não me parece haver falhas como avó. É muito evidente que minha mãe é avó profissional de talento nato, uma espécie de Messi da genealogia.

Mudança brusca

Quando digo a meu objeto de afeição que minha mãe era uma mulher muito (muito, muito) brava e autoritária, ela ri e desdenha. “É como se o Lobo Mau tivesse sido abduzido pela Vovozinha”, reflito. Ela dá de ombros. Para provar que digo a verdade conto casos, cito passagens, falo que quando eu disse que era gay ela ficou cinco anos sem falar comigo, mas minha mulher me ignora. Para ela, Nonna sempre foi essa mulher cheia de personalidade, mas doce e gentil, que deita no chão para que netos pulem em sua barriga (em sentido literal), que faz macarrão às 2 da manhã se um neto pedir (já pediram várias vezes), que deixa qualquer um dos nove descendentes riscarem as paredes de seu apartamento (estão todas riscadas). Mas essa não é a mulher que me pariu e criou. Essa mulher aí nasceu em 1992, com a chegada de Paulo, o primeiro neto.

Não sei se existe no mundo uma avó mais amada. Os netos adolescentes, que já poderiam ter batido asas, ainda ligam para bater papo e dizer que a amam. Os pequenos, num total de sete, dormem voluntariamente em sua casa pelo menos uma vez por semana. Na véspera dos 76, Bruna, 8, ligou para dizer que queria dormir com ela para ser a primeira a dar os parabéns. Nonna disse sim (Nonna nunca disse não para um neto, talvez porque tenha esgotado com os filhos a quantidade de nãos que uma pessoa pode dizer na vida) e Bruna emendou: “Quem você acha que é o neto que mais te ama?”. Sem saber o que responder, Nonna disse o nome daquele que mais telefona: “Antonio”. E Bruna, ofendida, respondeu: “Não, Nonna! Sou eu”. Quando escuta esse tipo de coisa, Nonna se derrete. Literal (como disse, ela sua muito, sua no inverno, sua quando venta, sua na neve) e figurativamente.

Homenagem

No dia da festa, não sei quem teve a ideia de pedir para Estela tocar piano, mas, quando ouvi, o piano já rolava na sala. Aos poucos, fomos chegando e sentando em volta. Estela, 12, toca como só um adulto é capaz de tocar, e emociona como uma criança é capaz de emocionar. Comovida, Nonna observava. Quando uma música acabava, ela pedia outra, e, quando Estela cansou, quis que algum outro neto tocasse, “qualquer coisa, qualquer coisa”, repetia. Antonio, 17, foi para o piano. Tocou mesmo qualquer coisa, só para cumprir tabela. Foi aplaudido. Depois, Paulo, 20,
se candidatou. Tocou “O bife”. Foi ovacionado. Com a saída de Paulo, Nininha foi até o piano. Tocou “Parabéns a você”, ou uma música muito parecida com “Parabéns a você”. Foi aplaudida de pé. Kiko foi até lá e tocou um troço indecifrável, mas o auditório comandado por Nonna adorou. Tomei coragem e fui me sentar em frente ao teclado e toquei dó-ré-mi-fá, a única coisa que sei tocar no piano. E, mesmo tendo errado uma das 24 notas que a música tem, juro ter ouvido um “bravo!”. Finalmente Estela voltou e pudemos escutar Chopin outra vez, para emoção de Nonna, que quando está muito comovida treme toda de levinho. Mas disso talvez só eu saiba.

Na hora de cortar o bolo, os nove netos se aboletaram ao redor da matriarca. Mais beijos e abraços. Durante o cafezinho, Nonna contou que tinha sonhado com meu pai, com quem viveu por 33 anos, e disse que ela e ele estavam em uma festa, que ele estava lindo e elegantemente vestido, e emendou um “como sempre”.

Fui embora pensando se minha mãe já teria tido um aniversário como aquele. Com 12 anos, ela perdeu o pai. Com 13, embarcou num navio com a roupa do corpo rumo ao Brasil. Até os 18 estudou em colégio interno. Depois, casada e mãe de quatro filhos, teve que priorizar a festa das crianças. Ao virar avó, meu pai morreu e ela teve que se reinventar.

À noite, eu estava em casa vendo TV quando meu celular tocou. Era ela para agradecer a festa. Antes de desligar, tratou de esclarecer minha dúvida sem que eu precisasse perguntar. “Esse foi de longe o melhor aniversário da minha vida.”

A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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