Carmita Abdo faz um breve - e necessário - panorama das mudanças da sexualidade feminina nas últimas décadas
As pesquisas confirmam que, no Brasil e em todo o mundo, a iniciação sexual acontece cada vez mais cedo. Atualmente, os jovens começam a manter relações sexuais completas em média aos 15 anos, tanto eles quanto elas. Essa idade varia dos 10 aos 20 anos, em nosso país. O invariável, entretanto, é o sexo praticado na iniciação: acontece entre colegas da mesma escola, do mesmo bairro ou círculo social.
A “garota de programa” deixou de ser a parceria habitual dos meninos iniciantes exatamente porque a revolução sexual das últimas décadas propiciou às meninas compartilharem essas experiências.
Some-se a isso a investida profissional a que as jovens aderiram de forma irreversível, valorizando a carreira e, consequentemente, protelando a união estável para a terceira década da vida, após se firmarem nas posições a que tiveram acesso de forma crescente.
Daí, com iniciação mais cedo, casamento e filhos mais tarde, as mulheres (antes restritas a poucos relacionamentos afetivos-sexuais até se casarem) passaram a ter pelo menos 15 anos de vida sexual ativa e diversificada até assumirem (ou não) o compromisso do matrimônio e da maternidade.
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A possibilidade de múltiplas parcerias (sucessivas e até simultâneas) as tornou mais experientes, porém nem sempre mais satisfeitas. Isto porque os relacionamentos mudaram drasticamente de perfil, a partir da década de 70: se eram baseados na expectativa de intimidade, cumplicidade, fidelidade e estabilidade, passaram a priorizar autonomia, diversidade, experimentação e independência.
O namoro foi, portanto, substituído pelo “ficar”. A sequência “flerte, envolvimento, vínculo”, característica dos anos 50 e 60, deu lugar ao descompromisso e à provisoriedade da modernidade líquida dos nossos dias, assim batizada por Bauman.
Sem objetivo de casar e procriar, é natural que o sexo se desvinculasse do afeto, como foi para quatro em cada dez mulheres brasileiras de todas as idades, no início dos anos 2000. Chegando a cinco ou seis em dez, uma década depois, quase se equiparando aos três quartos dos homens (não a totalidade deles!) que eram – e continuaram sendo, na mesma proporção – adeptos do sexo pelo sexo.
Todas essas inéditas e significativas mudanças foram alavancadas pela chegada da pílula anticoncepcional em meados do século passado, a qual viabilizou a conquista da autonomia econômica pelas mulheres.
Enquanto elas se superavam surpreendentemente, os homens surpreendidos respondiam com prontidão (os corajosos), perplexidade (os distraídos) ou inibição (os inseguros).
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Um novo repertório
Em meio a tal transformação sócio-cultural, os medicamentos pró-eréteis, descobertos no final do século 20, passaram a fazer parte da rotina dos relacionamentos sexuais casuais. Nem sempre tendo ideia do nível de experiência da eventual parceira, de qual seria o repertório preferido e do grau de ousadia permitido durante a relação, homens jovens e saudáveis, senhores de meia-idade em bom ou mau estado físico e idosos reabilitados para a atividade sexual se valeram das pílulas azuis, amarelas, de qualquer cor, para não “fazerem feio” diante de mulheres supostamente resolvidas no sexo.
Há quem enalteça e festeje a reviravolta que atropelou as últimas gerações e motivou novas formas de erotismo, embaladas pelos sites, aplicativos e tantos outros recursos que ensejaram o namoro pela internet, os nudes, o sexo virtual etc., etc… Há quem lamente e pragueje contra essa “falta de compostura” e excesso de despojamento.
Não cabe aqui euforia nem nostalgia, aplausos nem vaias, valendo sim aproveitar a liberdade conquistada, a diversidade escancarada, os limites e o preconceito superados. E ir além, aonde a maturidade permita à mulher do século 21 continuar surpreendendo não em todos, mas no melhor dos sentidos: fazendo a diferença!
* Psiquiatra, professora do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Fundadora e coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (ProSex) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP e presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP)
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Imagem principal: Camilla de Carvalho