Conheça a arte centrada no clitóris de Sophia Wallace
Num cenário distópico, 200 milhões de homens teriam o pênis cortado. E seguiriam trabalhando, tendo filhos e até fazendo sexo. No prazer, inclusive, ter o órgão não faria diferença nesse mundo hipotético. Muitos casais se satisfariam friccionando áreas vizinhas, filmadas por uma pornografia de virilha. É muito estranho de imaginar. E, ao mesmo tempo, é a vida relegada ao clitóris ainda hoje. Falsamente secundário, esquecido, desconhecido e mutilado sem causar comoção geral. Para a artista americana Sophia Wallace, isso precisa mudar.
Baseada no Brooklyn, em Nova York, ela migrou da fotografia para a arte conceitual incomodada com o desequilíbrio. “Ninguém sabe que forma tem um clitóris e, ao mesmo tempo, vemos desenhos de pintos por todos os lados”, afirma. Com bom humor, suas instalações mesclam pedagogia e entusiasmo ao redor do órgão, que teve a anatomia completa descrita pela primeira vez apenas em 1998, depois que muitas leitoras da Tpm já haviam iniciado suas vidas sexuais.
Com os desenhos de Cliteracy, exposição de 2013 que incluía até um touro mecânico, Sophia quis multiplicar a desconhecida figura. O título brincava com “literacy”, palavra em inglês para alfabetização. Foi o início de uma batalha contra os iletrados que está longe de terminar. No ano passado, enquanto expunha uma de suas esculturas clit em uma universidade do sul dos Estados Unidos, a artista recebeu ameaças de morte. “Ainda assim, há pintos desenhados em carteiras de qualquer salas de aula”, rebate. Sua nova mostra, Over and Over and Over, feita de frases e palavras em neon que festejam a sexualidade feminina, circula pelas galerias americanas no momento.
Tpm. Como as pessoas reagem à sua arte?
Sophia Wallace. Ninguém pode ver o corpo feminino, particularmente a genitália, de forma neutra. Sexo, tabu e sujeira são ideias sempre projetadas. No assédio nas ruas, por exemplo, a primeira reação costuma ser “ela estava pedindo”. Com meu trabalho tento trazer mais dignidade ao órgão e representá-lo, mostrar que existe e como é. Afinal, estamos falando de algo que metade da população tem mas que é inteiramente invisível na nossa cultura. Algumas mulheres reagem dizendo: “tenho um clitóris e sei tudo sobre ele”. E não, você não sabe! Eu não sabia. Vejo que há como se fosse uma hipersensibilidade em torno do tema, como se bucetas fossem nojentas e não precisássemos falar delas. Ao mesmo tempo, há uma aceitação de que pintos são incríveis, hilários, universais.
Seu trabalho fala de uma incompetência geral no sexo. De quem é? Da sociedade inteira. Medicina ocidental, religião, política e educação. Tenho amigos que não fazem sexo oral se estiverem num encontro casual. Fico horrorizada com eles. Ao mesmo tempo, muitos homens se importam com o clitóris e não sabem bem o que fazer. E, para piorar, muitas mulheres acham que estão pedindo demais. Talvez, numa transa, cheguem até a metade, talvez quase tenham um orgasmo. Mas o fato é que, no final, se não chegaram lá a dois, raramente vão “terminar sozinhas”. E o cara sempre faz isso, é natural que faça. É uma diferença que nos faz mal. A educação sexual [nos Estados Unidos] ensina que é tudo sobre a vagina. Para as meninas, a mensagem é: garotos tem ereções, não fique grávida. É muito profundo.
O que você aprendeu quando estava crescendo? Cresci em Seattle e ainda que meus pais tenham sido hippies ativistas contra a guerra, não analisaram questões de gênero a fundo. Então repetiram a mesma bosta com que cresceram. Quando descobri meu clitóris, na segunda série, não sabia nada a respeito, apenas que a sensação era incrível. Fiquei achando que era tipo “meu segredo”, já que ninguém falava sobre. E, na adolescência, tinha sonhos eróticos (como todos da minha idade, mesmo que nunca se fale sobre meninas sendo extremamente sexuais nessa fase) e neles os orgasmos vinham por penetração. Quando comecei a transar com meninos e isso não aconteceu, fiquei tão confusa. Achei que meu corpo fosse reagir como todas as cenas de sexo a que havia assistido. A educação que tive me ensinou que o sexo para as mulheres ocorre na vagina, mas não era lá que eu sentia prazer. Como tantas mulheres, algumas que encontro ainda hoje e que me escrevem por causa do meu trabalho, me culpei e me envergonhei. Não tinha percebido que a definição oficial de “sexo” é o que dá prazer ao homem e que isso ignora minha anatomia. Sexo é muito mais.
Por que decidiu fazer arte sobre o clitóris? Eu andava pensando bastante sobre como o sexo era representado na mídia e o pouco que sabemos dele. Então meu tio me contou de uma conversa com a minha avó em que ela dizia nunca ter tido um orgasmo. Pariu cinco crianças e tenho certeza que meu avô gozou muito dentro dela, mas morreu sem experimentar esse prazer. Isso me mexeu. Se você tem uma vida sexual, é seu direito ter prazer nela. É seu direito saber como seu corpo funciona. Algumas pessoas são exibicionistas, mas não é o meu caso. Acho que trabalho com direitos humanos e cidadania. Por algum tempo, feministas têm se levantado contra o estupro e a favor dos direitos reprodutivos. É hora de falar também do prazer. O fato de que há uma grande disparidade de orgasmos entre homens e mulheres hétero diz muito. Homens gays gozam, mulheres gay gozam, mulheres sozinhas gozam. Vamos falar a verdade sobre o problema?
Naturalizar e erotizar são dois movimentos diferentes, não? Sim, mas ambos essenciais. Têm a ver com soberania do corpo e com espalhar informações corretas. Se você transa com alguém que tem um clitóris, tem que saber que é lá que estão 8 mil terminações nervosas. A menos que ela te diga “não mexa aí”, meu deus, é onde tudo precisa começar. O nu feminino é a metáfora de toda a sexualidade e, ao mesmo tempo, não reconhecemos como as mulheres têm prazer. Gosto de comparar ao nosso pensamento medieval, quando pensávamos que a Terra era o centro de tudo. Ainda achamos que o pênis é o centro de tudo no sexo, mas é só uma entrada. Erotizar é essencial para contrapor ideias que aparecem diariamente, como a do artigo [do jornal New York Times] Scientists Ponder an Evolutionary Mystery: The Female Orgasm, que cita o fato de tantas mulheres não terem orgasmos no sexo hétero como prova de que orgasmos femininos não devem ser naturais. A verdade é que mulheres que se masturbam têm orgasmos. Não é supresa que cientistas naturalizem o status quo patriarcal, mas isso só continua se espalhando por falta de uma conversa honesta sobre o direito das mulheres ao prazer.
Créditos
Imagem principal: Sophia Wallace / Divulgação