Sobre como a possibilidade de ver você morrer me ensinou a viver
Foi apenas quando entrei no salão e tirei o elástico do cabelo, desfazendo aquela espécie de coque que usei por anos, e sentindo os fios caírem sobre meu pescoço que entendi como estava nervosa. Até ali a ideia de raspar a cabeça em solidariedade ao seu câncer não me parecia nada além de exótica. Mas frente a frente com o profissional que rasparia o cabelo bateu uma palpitação. Levemente trêmula, sentei na cadeira e pedi que ele passasse máquina três. O barulho do aparelho ligado me deixou ainda mais tensa e fechei os olhos. Quando abri, estava com uma trilha do lado esquerdo da cabeça e com o couro cabeludo bastante exposto porque a penugem que restou não era capaz de escondê-lo. Três minutos depois, me vi completamente careca.
Andando para casa enxerguei meu reflexo no vidro de uma loja e quase desmaiei: não me reconhecia mais. Para piorar, fazia muito frio e minha cabeça estava gelada. Descobri que passando a mão em movimentos rápidos para cima e para baixo eu conseguia esquentá-la um pouco. Cheguei em casa e decidi postar uma selfie no Instagram. Pouco tempo depois, Bruna, a sobrinha de 9 anos, fez um comentário na foto e, via Instagram, lembrei de alertá-la que a Nonna – minha mãe – não poderia saber. “Não fala nada para a Nonna”, implorei. Tarde demais.
Como antecipado, minha mãe deu aquela despirocada básica avisando minhas irmãs e meu irmão que só voltaria a falar comigo quando meu cabelo crescesse. Aparentemente ela tinha sido capaz de superar meu lesbianismo, meu corintianismo, meu comunismo, mas o carequismo foi o que rompeu a corda.
Entrei no banho e deixei a água bater em minha cabeça. Senti a temperatura, a textura e ela escorrer até meu rosto, depois até minhas costas. Fiquei ali um tempo assimilando a nova experiência.
Na saída, me olhei com mais calma no espelho. Não era exatamente eu, mas começava a ser uma versão de mim mesma que poderia até me conquistar.
O tempo de banho foi reduzido à metade, o gasto com xampus e cremes também. Não havia mais a necessidade de pentear – não que eu fizesse muito isso antes – nem de secar. Não haveria mais o “good hair day” e o “bad hair day”, nem o “ai, saco, esqueci o elástico!” antes da ioga. Havia alguma outra coisa diferente em mim, uma noção, uma consciência que eu não era capaz de decifrar. Muito tempo depois fui entender que gosto era aquele: o de liberdade.
Acontece que o contrário de liberdade não é bem o aprisionamento, mas a segurança; escolher um é abrir mão do outro.
Nos dias seguintes entenderia que meu cabelo, que não tinha na real nada de muito especial mas cumpria a função de agasalhar minha cabeça, me deixava segura e protegida, e que agora estava exposta. O diabo da liberdade é que ela é tão rara, tão especialmente rara, que provar apenas uma pequena dose dela às vezes pode ser demais. E eu, que sempre disse por aí que não tinha nenhuma tendência à depressão, sem motivo aparente entrei num quarto escuro, frio e cheio de monstros.
Lugares desconhecidos
Claro que não foi apenas o cabelo, ou a falta dele, mas o medo de perder você para o câncer e de ter que conhecer uma vida que não contivesse você a um telefonema de distância, e seu colo quando a vida castigasse, e suas palavras quando as dúvidas batessem.
E uma vez iniciado o processo, uma vez tendo aberto a porta que me levaria a lugares desconhecidos, só me restava seguir e tentar achar uma saída do lado de lá. Voltar, eu sabia, já não era possível.
Enquanto você deixava que a quimioterapia entrasse em seu corpo e fizesse o trabalho, do outro lado do oceano eu tentava ficar de pé e me reconhecer. A mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível. Permitir que ela nos conduza é pedir para ver monstros porque a mente existe para tumultuar, para perturbar e infernizar, e por isso precisa ser escravizada, controlada, dominada. Educar o pensamento, David Foster Wallace ensinou, é a verdadeira liberdade. Demorei para entender o que ele queria dizer, mas finalmente no meio daquela escuridão pude ver uma faísca.
E um certo dia, depois de muita dor e de muita escuridão, dei a volta completa. Temos tantos interesses em nossas vidas, disse Proust, que não é incomum que, em certas ocasiões, as fundações de uma alegria que ainda não existe estejam alinhadas à intensificação de uma dor que ainda estamos sofrendo. E era isso o que estava acontecendo comigo.
Calmamente você me explicou que estava bem, que estava forte e que tinha sacado como a doença poderia ser um presente. Você me disse que toda vez que saía de casa para ir à quimio olhava para trás, para seu jardim, para o terraço, para a sala e agradecia ter podido fazer aquela casa e morar nela com a pessoa que você ama. Você me disse que já não dava as coisas como certas e que entendia perfeitamente que poderia não voltar a rever tudo o que amava. Você me explicou que as coisas são especiais porque elas estão passando e acabando, dia após dia, e que o câncer havia aberto seus olhos. Você me disse para levantar da cama e encarar a vida, com ou sem você nela, porque, embora você não pretendesse ir a lugar algum tão cedo, não podemos ter certeza de nada. Você pediu que eu aceitasse as incertezas da vida, mandou que eu parasse de tentar ajustar as verdades a mim e que começasse a me ajustar às verdades.
Quando entendi que você, no meio de um tratamento contra o câncer, estava cuidando de mim, e que parecia estar muito mais forte do que eu, comecei a acordar – e foi só nessa hora que consegui absorver toda a liberdade que batia à porta.
O câncer já não está entre a gente, e ele nos deixou como presente uma versão ainda mais forte e madura de você. E eu, que de alguma forma escolhi mergulhar nessa escuridão ao seu lado, também ganhei de presente uma versão menos infantilizada e mimada de mim mesma, uma que aceita o tempo e a incerteza das coisas, e que entende que temos pouco tempo junto daqueles que amamos aqui neste planeta maluco – e que por isso cada segundo conta.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com