Sem essa conversa de que mulher gosta menos de sexo que o homem
Sexo é coisa tão comum que até seus pais fazem.
Ou, pelo menos, já fizeram. Pode acreditar, você é a principal evidência disso. Os outros 7 bilhões de habitantes do planeta são a contraprova de que se trata, efetivamente, de uma prática bastante corriqueira.
Todo esse sassarico começou graças à reprodução sexuada, que passou a exigir a conjunção carnal de células femininas com células masculinas – é o que chamo de evolução! Como isso acontece há pelo menos 1 bilhão de anos, por que, hypocrite lecteur, ainda se finge que uma metade da humanidade gosta mais de sexo do que a outra metade? Afinal, só chegamos até aqui com a franca colaboração, diria até mesmo entusiasmo, de ambas as partes: mulheres e homens.
Então vamos combinar um basta definitivo àquela conversa de que homens são de Marte, onde a sacanagem rola solta, e mulheres são de Vênus, onde é preciso tomar um vinho antes. Ninguém é de ninguém. Como o centenário Nelson Rodrigues vaticinou, “se todos conhecessem a intimidade sexual uns dos outros, ninguém cumprimentaria ninguém”.
Especialmente no caso de “uns” e “outros” serem mulher. Aí o buraco é mais embaixo. Além de mudar de calçada para evitar o tal cumprimento, ainda vai ouvir algum impropério lá do outro lado da rua: “maçaneta”, “piranha” e “periguete” estiveram nas hashtags machistas das última décadas.
Na reportagem “Gosto, não nego”, na página 60, a historiadora Mary Del Priore faz o exame de DNA do problema. “Durante séculos, havia apenas dois papéis compatíveis com a mulher: o de casa e o da rua”, explica a autora de Histórias íntimas. Em casa, sexo só entrava para procriação, depois de limpar bem os pés. E apaga essa luz que não sou sócio da Light. Já a rua, ah, a rua era o habitat natural das mulheres que dizem sim.
Cada vez mais mulheres pulam esse muro de hipocrisia que separa a casa e a rua. Uma nova geração se diverte misturando os papéis e embaralhando a geografia do desejo, sem medo de ser feliz. Porque a felicidade, você sabe, pode ser de carne.
Fernando Luna, diretor editorial
*Esse é o primeiro verso de um poema de Armando Freitas Filho, publicado no livro Números anônimos: “A felicidade pode ser de carne/ de pele apenas – corpo sem cara/ nem cabeça, mas com a boca máxima/ e muitos braços, peitos, coxa/ perna musculosa, clavícula/ omoplata, ventre liso esticado/ peludo no lugar certo do sexo/ e mais o cheiro preciso, exasperado/ da axila, virilha, pé/ tudo chegando junto, de uma vez/ ou aos poucos, esquartejado”.