A barata no meio da sala

por Milly Lacombe
Tpm #150

Depois de dez anos você me faz uma revelação bombástica e eu reavalio nossa relação

Chegamos de viagem mais tarde do que gostaríamos. Como sempre, o carro estava cheio de coisinhas e sacolinhas e cestas de verduras e legumes que trouxemos da horta que você fez para a gente no meio do mato, ao pé da cabana que você também construiu para que pudéssemos ficar mais perto das substâncias essenciais da vida – silêncio, árvores, bichos, montanhas, água, horizonte. Voltar para São Paulo nunca é experiência ordinária e chegar pela marginal tem alguma coerência porque o choque vai nos colocando aos poucos na estranha vibração da cidade grande. 

Mas dessa vez a pancada foi um pouco maior: perto de casa começamos a ver árvores caídas e ruas inteiras no escuro, uma outra qualidade desse estado rico e pimpão que não consegue fornecer água e luz com muita regularidade ao seu cidadão. Em São Paulo, chuva forte é sinônimo de falta de luz, pouca chuva é explicação para a falta d’água, e, por isso, assim que a tempestade começa a cair o morador atento se entrega à oração para que dessa vez sua casa continue iluminada, o que quase nunca adianta. E nesse fatídico domingo à noite minha oração falhou imperialmente. 

O bairro inteiro no maior breu, e você e eu descarregando o carro com o auxílio da lanterna do celular para podermos achar todas as sacolinhas que você insiste em trazer com as mais variadas coisas, uma teimosia com a qual lido há quase dez anos, essa de não conseguir compactar tudo em um só volume. É nas horas de maior estresse cotidiano que a saúde de um relacionamento pode ser medida; e aquele domingo à noite iria fazer um checkup da nossa. 

Sacolinhas e cestas de verdura no chão da sala, me dou conta de que sem luz não temos ar condicionado e, com a temperatura beirando os 60 graus, a noção de que suarei e matarei pernilongos até amanhecer me nocauteia. Enquanto procuro por velas você tenta fazer caber tantas verduras e legumes na geladeira, na esperança de que a luz volte em breve e que nada murche. Vejo você tirando prateleiras da geladeira para conseguir encaixar os sacos de verdes – que você traz em quantidades industriais para distribuir para todos os nossos amigos – e não ofereço ajuda porque durante esse tipo de estresse cotidiano o natural é que falemos apenas o essencial e nos restrinjamos às coisas práticas que possibilitem a minimização dos problemas.

Mata, mata!

Meu celular, com 4% de bateria, está prestes a me abandonar, então tento ser rápida no acendimento das velas enquanto ouço você resmungando alguma coisa na cozinha, que escolho ignorar, antes de se juntar a mim na sala para pegar uma vela. E é precisamente nessa hora que as circunstâncias dão uma piorada. “Uma barata! Uma barata!”, você grita. E eu, que já estava quase subindo a escada para ir até o quarto, sinto meu coração pular uma batida. Suporto ratos, aranhas, crocodilos e jacarés, mas não sei lidar com baratas. “Mata! Mata!”, grito histericamente a despeito de ser quase meia-noite. E você me choca e aterroriza com uma informação: “Eu não consigo matar baratas”. 

Durante esses dez anos já passamos por muitas coisas. Mortes, doenças, brigas, desencontros, estranhamentos, falta de grana e falta de casa, mas ainda não havíamos enfrentado a trágica situação de estarmos sozinhas dentro de casa com uma barata. Diante da constatação de que você não mataria a barata fiz a única coisa que sei fazer quando alguém diz “uma barata”: comecei a uivar como uma soprano descontrolada. Me ouvindo uivar você gritou por reflexo, e nosso dueto talvez tenha acordado o bairro, embora não tenha assustado a barata. 

Quando você parou de gritar, conseguiu dizer: “Vai chamar o guarda! Vai chamar o guarda!”. O guarda é o vigia cuja guarita fica convenientemente bem em frente à casa. “Vou, mas você fica olhando para a barata, não deixa ela sair daí”, eu disse, sabendo que uma barata em fuga é impossível de ser encontrada e eu não conseguiria passar a noite naquela casa se isso acontecesse. O vigia, que já tinha escutado os gritos, estava a postos e não titubeou quando implorei para ele entrar e dar uma chapuletada na barata. “Deixa comigo”, disse confiante. “Preciso apenas de um chinelo”, emendou ainda triunfante. “Cadê ela?” “Tá ali, Zé. Perto daquela porta”, apontei. Vendo o bicho, Zé deu alguns passos firmes, ergueu o braço com a havaiana e desceu certeiro. E então eu vi a cena que, entre todas no mundo, mais me apavora: Zé dando contínuas e cada vez mais rápidas chapuletadas no chão, em locais diferentes, indicando que alguma coisa havia dado errado. Enquanto isso você pulava como quem está pisando em brasas e voltava a gritar como uma soprano, no que foi seguida por mim. A performance acabou quando Zé disse: “Pronto”. “Matou, Zé?”, perguntei por perguntar, porque o “pronto” já indicava que sim. E foi quando ele disse: “Matei não”. 

Há muitos anos implico com o “tá não”, “sei não” e “pode não” porque eles, por instantes, dão a ideia de que “tá sim”, “sei sim” e “pode sim” e apenas depois negam o que parecia ser certo. “Não?”, reagi apavorada. “Não, mas ela foi embora”, ele disse muito confiante antes de completar: “Barata é assim, quando não morre vai embora”. Me devolveu a havaiana e saiu com um boa-noite. 

Sozinhas outra vez, tentamos acreditar que a barata tinha mesmo ido para o coitado do vizinho e continuamos a arrumar as coisas. Não se passaram 2 minutos até que eu a visse outra vez, e agora ela corria na minha direção, sabe deus por quê. Meus gritos então alcançaram tons jamais alcançados, e você, outra vez pisando como quem anda por um chão em brasas e gritando agudamente, num ato heroico, e mesmo em estado de semi-histeria, pegou uma havaiana, ergueu o braço e, de forma espetacular, executou a barata com um movimento só. Talvez eu jamais tenha te amado tanto na vida. 

Vendo a barata esmagada no chão, e você ainda gritando e pulando, porque alguns medos não passam nem depois que a circunstância já mudou, tive ímpetos de jogar você no sofá e beijar todos os poros do seu corpo, mas fui contida pela noção de que você talvez reagisse com um murro em meu nariz. Não sei quando exatamente paramos de gritar e retomamos os afazeres, mas sei que algum tempo depois nos encontramos na cama. Ainda sem falar muito, apagamos as velas, demos um boa-noite protocolar e entendemos que, diante da temperatura senegalesa e de todos os pernilongos a nossa volta, não dormiríamos abraçadas como fazemos há dez anos.

Eram 7 horas quando senti seu corpo encostar no meu, uma sensação que até hoje me emociona como na primeira noite em que dormimos juntas, e que me faz entender que o que somos é o que vivemos e experimentamos juntas, de mortes precoces a baratas pela sala, um privilégio concedido àqueles que, a despeito da crueldade, das tentações e do cinismo do mundo lá fora, teimam em continuar.


A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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