A cidadania é a solução definitiva

por Juliana Borges

Hoje faz 11 anos que foi criada a Lei Maria da Penha, mas muito ainda falta para que as mulheres estejam realmente protegidas; mulheres negras ainda mais

Um marco legal na luta dos movimentos feministas no combate à violência contra as mulheres, a Lei 11.340, ou Lei Maria da Penha, foi sancionada em 7 de Agosto de 2006. Hoje, é o principal instrumento para conter a violência sexista contra as mulheres em nosso país – inclua no conceito de violência doméstica os sofrimentos psicológicos e também a violência sexual ou patrimonial, englobados no texto da lei.

De inegável importância, a aplicação da Lei também se dá para casais lésbicos e para mulheres transexuais, indo além da questão marido ou parceiro, para incluir também padrastos/madrastas, sogros/sogras, agregados, sempre tendo a mulher como vítima. Na prática, a Lei Maria da Penha determina que, após a queixa na polícia ou Justiça, os magistrados têm 48 horas para analisar se será necessária a proteção.

A Lei leva o nome de Maria da Penha Maia Fernandes. A farmacêutica passou 23 anos sofrendo violência doméstica em seu casamento e foi vítima de tentativa de assassinato por duas vezes, ficando paraplégica. Maria da Penha lutou por 19 anos para que seu agressor respondesse pelas violências e tentativas de assassinato. O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), sendo o Brasil condenado pela não existência de mecanismos para coibir a violência doméstica contra as mulheres no país.

Como a Lei Maria da Penha é percebida

Segundo pesquisa dos Institutos Data Popular e Patrícia Galvão, 98% da população tem conhecimento da lei. Essa mesma pesquisa, de 2013, traz ainda outros dados relevantes: 54% dos entrevistados alegaram conhecer uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma mulher. Sete em cada dez pessoas entrevistadas consideram que a violência contra a mulher acontece mais dentro de casa do que em espaços públicos, e metade das mulheres sente-se mais insegura no ambiente doméstico.

Um dos dados, porém, é dos mais perturbadores: 85% dos entrevistados concordaram que as mulheres que denunciam seus parceiros têm mais possibilidade de serem assassinadas. Além disso, metade afirmou acreditar que o modo como o sistema de Justiça pune não reduz a violência contra as mulheres.

Não há dúvidas de que este é um importante marco histórico para a visibilidade e constituição de mecanismos legais que visem coibir a violência contra as mulheres em nosso país. Contudo, depois de 11 anos, é possível e necessário que façamos balanços e análises no sentido de ampliar e melhorar a aplicação da lei.

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Perguntas precisam ser respondidas com ações. Quais seriam as motivações para que 85% da população avalie que as mulheres têm mais chances de serem assassinadas se denunciarem seus agressores, mesmo que a maioria das pessoas ainda acredite que é preciso realizar as denúncias? Quais seriam as motivações para que a maioria dos entrevistados entenda que a Justiça não pune devidamente os agressores?

Uma lei para todas as mulheres?

Tomando como referência que o racismo e o machismo são estruturais e estruturantes da sociedade brasileira, é preciso que levemos em conta esta intersecção na análise do impacto de políticas, com todas essas nuances associadas.

Muitos foram os avanços até aqui, contudo, o relatório Mapa da Violência de 2013 apontou que, entre 2003 e 2013, a morte de mulheres brancas por violência diminuiu 10%, enquanto a de mulheres negras aumentou 54% em todo o país. Essa realidade é corroborada por um levantamento de 2013 da Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180, cujos dados indicam que 59,4% dos registros de violência foram feitos por mulheres negras. E segue: segundo um estudo do IPEA, mais de 60% das vítimas de assassinato são negras e elas têm ainda duas vezes mais chances de serem assassinadas do que as mulheres brancas.

Com isso, nenhuma discussão no Brasil pode ser feita sem levar em conta a questão racial. Foram 328 anos de período escravocrata, tendo os corpos negros desumanizados como a primeira mercadoria do país e sendo a economia da escravidão o sustentáculo da economia brasileira.

Essa opressão – histórica, mas também intensamente atual do racismo perpassando todas as relações sociais – também se mostra latente quando verificamos que há dificuldades a serem enfrentadas para que a Lei Maria da Penha tenha impacto efetivo na vida de milhões de mulheres negras no Brasil.

Entre os dados apontados pelo IPEA, destaca-se o fato de pouca gente entender que a Justiça puna de modo efetivo os casos de violência – diversos podem ser os fatores que levem a essa realidade, portanto, seriam necessários estudos mais aprofundados. No entanto, não podemos deixar de refletir sobre os problemas na relação do Sistema de Justiça Criminal e a população negra no país. E quando falamos em “sistema” aqui, estamos falando de todo o aparato e instituições que coordenam o funcionamento do país.

Como acionar a lei

Um dos fatores que inicia o processo da Lei Maria da Penha é o acionamento da polícia ou da Justiça diretamente. Diversos são os relatos sobre policiais que desmotivam as vítimas a apresentarem denúncia e queixa, assim como são muitos os casos em que ocorre a demora no atendimento da chamada.

A polícia é uma instituição absolutamente marcada pelo elemento racial como diferenciação desigual. A relação com a instituição nas periferias brasileiras é reconhecidamente tensa e violenta. Segundo o índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), que integrou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2013, 70,1% da população brasileira não confia nas forças policiais. Neste cenário, como confiar que seu caso terá resultado?

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Outro ponto que temos de levar em conta é o da Justiça Criminal, questão pouco discutida mesmo entre ativistas que lutam por justiça e igualdade social. Segundo a mesma pesquisa, apenas 32% da população confia na Justiça brasileira. Se remontarmos a história, nossa primeira Lei Criminal, de 1830, já determinava tratamento diferenciado entre brancos e negros, mesmo os já livres.

Com o decorrer do tempo, mesmo que a diferenciação tenha sumido de modo explícito, diversas foram as leis e mecanismos utilizados de modo a manter a criminalização e fazer ainda vigoroso o sistema de desigualdades baseado na hierarquia racial – ou, como diz a advogada norte-americana Michelle Alexander, a manutenção de um “sistema de castas raciais”.

Somos compelidas a acreditar que o sistema de justiça criminal surge para garantir normas e leis que assegurarão segurança para as sociedades. No entanto, a realidade do sistema de justiça criminal é absolutamente diversa de garantir segurança, é, na realidade, um mecanismo que retroalimenta a insegurança e aprofunda a vigilância e a repressão.

A falta de acesso à justiça, a advogados e defensores com tempo e qualidade desse tempo para atendimento a réus e vítimas, a morosidade, o tratamento desigual baseado no fenótipo são todos indícios de que há, na verdade, uma constante insegurança sobre a garantia de direitos no contato com este sistema. Um dado importante para levarmos em conta: 84,5% dos juízes, desembargadores etc. são brancos, enquanto 67% da população prisional no Brasil é negra. Esse é um dado que já nos dá sinalizações de como compreender este complexo e difícil sistema e interações.

Basta a lei?

A Lei Maria da Penha não pode ser vista como algo que em si resolverá questões de violência em uma sociedade fundada sob bases violentas. A Lei deve ser acompanhada de uma rede governamental e de serviços e direitos à cidade para além do aparato penal - ou seja, acesso ao trabalho e à renda pelas mulheres, à saúde e educação de qualidade, ao saneamento básico e à moradia etc., além de uma rede de equipamentos integrados, bem preparados e ativos que acolham as mulheres, inclusive para casos de acionamento de medidas protetivas e asilamento em locais sigilosos.

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As mulheres negras, por todas as vulnerabilidades consequentes do racismo e do sistema de desigualdades, são as que mais necessitam deste aparato estatal-governamental em pleno funcionamento ou não conseguirão romper com o ciclo de violência em que vivem. O descaso e a falta destes serviços, de políticas e de um projeto de desenvolvimento interseccionado e que atenda a estas questões de modo global e estrutural também compõe o arcabouço do genocídio da população negra brasileira.

Não há dúvidas de que marcos legais são importantes. Porém, precisamos romper com a visão de que problemas sociais devem ser tratados apenas do ponto de vista judicial penal. Como aponta Angela Davis, não podemos entender que problemas complexos serão solucionados sem respostas complexas e globais, envolvendo diversas instituições de nossa sociedade. Ou seja, nosso enfoque deve ser estrutural e de que mulheres negras são humanas e, portanto, devem ter acesso à cidadania plena. A lei como marco legal, a cidadania como proteção definitiva.

* Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política, onde estuda Sociologia e Política. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013)

Créditos

Imagem principal: Rita Wainer

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