Entrevistamos Sillvyo Lucio, o transexual masculino protagonista do road movie de Kiko Goifman e Claudia Priscilla
A vida de Sillvyo Lucio é dividida em vários a.D. e d.D. – “antes disso” e “depois daquilo”.
Antes disso, ele nasceu mulher em Jaguaribe, cidadezinha do Ceará, com um nome feminino que prefere não revelar (“ele não existe mais, kkkkk”, me explica depois na internet). Como tantos outros transexuais, o corpo era a Carandiru pessoal de Sillvio. “Me sentia preso. Nasci com vagina, vivenciei a maternidade, mas nunca deixei de ser homem”, conta à Trip por telefone.
Depois daquilo, Silva – seu sobrenome de nascença – virou Sillvyo. E, aos 49 anos, Sillvyo Lucio Nóbrega fala grosso, se define como heterossexual e é casado há uma década com Widna Nóbrega, uma mocinha 18 anos mais nova, de família de políticos influentes na também pequena cidade cearense de Pacatuba.
Um dia, seu caminho cruzou com o dos cineastas Kiko Goifman e Claudia Priscilla. O casal procurava no sertão nordestino casos singulares de arranjo familiar. Quando encontraram aquele cabra-macho baixinho, que usa bermuda, camisa polo listrada e chapéu de peão, não tiveram dúvida. “Percebemos que Sillvio não era mais um caso, que ia ter que entrar na van com a gente e ser personagem principal do nosso filme”, diz Kiko.
Daí veio Olhe pra mim de novo, misto de documentário e road movie que estreia hoje no CineSesc, em São Paulo, em sessões dobradinha com O vestido de Laerte, curta assinado por Cláudia. No filme, Sillvyo viaja com os diretores pelo Nordeste atrás de histórias de mais gente que sabe o que é sofrer o preconceito na pele – como uma família de albinos em pleno sertão.
Nunca antes na história
Com a experiência, conta ele três anos depois das filmagens, “nunca mais fui a mesma pessoa”.
Antes disso, ele já era “o assunto” da cidade. Formado em letras pela Universidade Federal do Ceará, já coordenou a pasta de diversidade na Prefeitura de Pacatuba – hoje tem um cargo administrativo. Não lembra de uma época em que já não era militante da causa LGBT.
“Me sentia preso. Nasci com vagina, vivenciei a maternidade, mas nunca deixei de ser homem”
Em 2010, chegou a dar um susto no então ministro da saúde José Gomes Temporão. Na época, o SUS (Sistema Único de Saúde) já havia regularizado a cobertura gratuita para cirurgias de mudança de sexo. Mas os pacientes contemplados eram poucos, a inclusão de mulheres querendo virar homem era nula, e a paciência de Sillvio encurtou. Ele interrompeu uma entrevista do ministro e, na frente da imprensa, e pôs a boca no trombone.
Ficou feliz quando conheceu Kiko e Cláudia. “Meu único foco é que as pessoas quebrassem estigmas, e que o Brasil reconhecesse que existem trans masculinos.”
Depois daquilo, tudo mudou. Sillvyo, que já era um cabra conhecido nas redondezas de Pacatuba, aterrissou no Sul pela primeira vez, para apresentar o filme ao lado dos diretores, no Festival de Gramado. A experiência foi “chocante”. Ele saiu convencido de que tudo em sua pessoa desagradara aos críticos: a forma de andar, de vestir, de ser, até o jeito como gesticulava com a boca ou coçava a genitália. Logo eles! “Imaginei que vocês que fazem cinema, jornalismo, arte com as letras... Tinha ideia de que eram seres iluminados, muito mais abertos. Mais do que nós, que vivemos anonimamente, lendo o que vocês escrevem.”
“Engano meu”, continua. “Falaram que eu era machista, que as posições que eu mostrava no filme eram de um homem atrasado.” (Sillvyo, a certa altura do filme, refere-se às mulheres como “marmita”.) Para ele, contudo, a indisposição de alguns críticos tinha muito a ver com seu porte físico. “Entendi que se eu fosse paulista ou carioca ou do sul, se eu fosse jovem, tivesse 20 anos e o estereótipo de um global, sarado, sem barriga...”
Apetite
Sillvyo é o oposto de tudo isso. Na foto do Skype, vê-se um homem gordinho e atarracado, de cabelo puxado para trás, com terno preto e gravata vermelha. Parece estar esperando o almoço, com uma Coca-Cola ao lado. Mas Sillvyo não quer só comida. Tem fome, principalmente, de mudança – sonha em fazer a cirurgia de “readequação sexual” logo. Calcula que a mastectomia, para retirada dos seios, mais uma cirurgia plástica, para dar “torso de homem”, custa R$ 12 mil (dinheiro que não tem).
Barba, cabelo e bigode já estão lá. Sillvyo gasta R$28 por mês numa cartela de hormônios masculinos – que toma há anos por conta própria, sem acompanhamento médico. Acredita que, por isso, teve trombose nas pernas em dezembro. Risco razoável, segundo ele. “É o preço, né? Dizem que mulher anda de salto alto e dói pra caramba. Você usa?”, pergunta pra mim. “Minha esposa usa e diz que tem sandália que é extremamente desconfortável.”
Eles ainda acalentam o sonho de, um dia, “embuchar” a mulher da relação via inseminação artificial, com um doador de sêmen, mais um pouquinho do material genético de cada metade do casal
Hoje Sillvyo e Widna têm duas crianças: os cães da raça pincher (aqueles pequeninos e estridentes) Maria Clara e Zezinho. Eles ainda acalentam o sonho de, um dia, “embuchar” a mulher da relação via inseminação artificial, com um doador de sêmen, mais um pouquinho do material genético de cada metade do casal. Sillvio não está muito certo se isso é possível, científica ou legalmente. Há precedentes, no máximo, de uma mulher que doou seu óvulo, e a parceira gestou o embrião.
Seria o segundo filho de Sillvyo: há muito tempo, quando a sociedade o reconhecia como “mulher” sem aspas, ele engravidou. Ele reencontra a filha adolescente em Olhe pra mim de novo, numa cena emocionante.
Antes disso e depois daquilo, Sillvyo ainda luta para encontrar um corpo que seja seu número. “Já tenho 49 anos. Será que vou morrer de velho num corpo que não me pertence?”
Vai lá: Olhe pra mim de novo
24/05 a 30/05.
Sexta a quinta, às 14h30 e 19h10. Atenção: Não haverá sessão das 19h10 no dia 27/05.
CineSESC
Endereço: R. Augusta, 2075 - Cerqueira César, São Paulo, 01413-000
Telefone:(11) 3087-0500
Estação: R. Augusta, 2047