O medo mora dentro

por James Cimino
Trip #218

A obsessão por segurança encontra sua expressão mais eloquente nas cidades brasileiras

A obsessão por segurança, um fenômeno global, encontra sua expressão mais eloquente nas cidades brasileiras, que abrigam gente cada vez mais isolada – e insegura. Na contramão, há quem ache que a solução está nos movimentos que tentam reocupar a cidade

O publicitário Caio Monteiro, 22 anos, se sente um prisioneiro do condomínio de classe média onde mora, em Perdizes, zona oeste de São Paulo. “Quando chego, levo um tempo convencendo os seguranças de que sou morador”, conta. Precisa digitar a senha de seu apartamento para fazer o elevador funcionar; se esquece e aperta só o botão do andar, o que acontece “pelo menos três vezes por semana”, fica preso na cabine até responder satisfatoriamente a um questionário pelo interfone. A última etapa, a leitura biométrica das digitais, às vezes falha. “O equipamento não lê direito, o alarme dispara e tem que vir alguém ver se eu sou eu mesmo.”

Assaltado sete vezes, uma delas à luz do dia, ele não considera os sistemas de segurança desnecessários. Só acha a coisa toda pouco prática e desconfia dos critérios. “Outro dia cheguei com um amigo de SUV e eles abriram no ato.” Também se ressente do clima de hostilidade gratuita entre moradores. “Fui criado no interior, brincando na rua. Conhecia todos os vizinhos e me sentia seguro. Hoje, não posso nem pedir uma xícara de açúcar para o cara do andar de cima. Não sei a senha do apartamento dele.”

A sensação de insegurança nas cidades brasileiras é movida a índices e histórias assustadoras de violência. São Paulo, em particular, viu os assassinatos aumentarem 20% no primeiro semestre de 2012, e registrou uma onda de crimes histórica no fim do ano. Isso abre espaço para medidas radicais de vigilância e para a febre dos condomínios fechados de alto padrão, com interiores monitorados, muros intransponíveis e seguranças com botões de pânico.

Enquanto as iniciativas para incrementar os espaços públicos chamam a atenção em cidades americanas e europeias, a exemplo da High Line, viaduto nova-iorquino transformado em parque suspenso, por aqui as ruas vão sendo abandonadas e o convívio escasseia, numa cena que lembra a melancólica “City with no children”, da banda canadense Arcade Fire: “Sinto-me vivendo em uma cidade sem crianças/ Em um jardim arruinado por um bilionário que mora numa prisão.”

O clima que favorece o recrudescimento da paranoia urbana tem a ver com um fenômeno global: a obsessão pela segurança. “Até o final do século 20, vivia-se um otimismo em relação ao futuro da humanidade, ao desenvolvimento tecnológico”, diz o sociólogo e analista de tendências Dario Caldas, do Observatório de Sinais, em São Paulo. “Por uma série de fatores, incluindo o 11 de setembro, esse quadro mudou. O medo é um dado do século 21.”

 

"Se você coloca um muro de 4 metros na sua casa antes que qualquer coisa aconteça, o que está dizendo é que não gosta do mundo e que não tem a menor confiança na sociedade brasileira.”

No Brasil, a corrida da classe média para os “abrigos” reflete uma descrença no Estado, que tem como atributo garantir a segurança. “Na falta de políticas públicas eficazes de combate ao crime, a cidade está sendo esvaziada e trancafiada em pequenas fortalezas”, diz Miguel Leme Brizola Neto, do Grupo Verzani & Sandrini, uma das maiores empresas de segurança particular de São Paulo. Cada vez mais procurados, seus equipamentos e equipes encarecem em até 10% condomínios já altíssimos, entre R$ 2 mil e R$ 5 mil mensais.

Assim como esse tipo de aparato é privilégio de poucos, a insegurança urbana tem ligação com a desigualdade social: apesar das conquistas recentes, que incluem o advento da “nova classe média”, com 40 milhões de pessoas que passaram a ter conta no banco, o Brasil continua em 12º lugar no ranking mundial dos países com os maiores desníveis de renda.

Pode ser que estejamos caminhando para uma igualdade maior – que, no futuro, pode criar uma cidade com menos crime. Mas, por ora, a questão da segurança não pode ser nem ignorada nem tratada com truculência. A visão é do urbanista Cândido Malta Campos Filho, professor emérito da FAU da USP e ex-secretário do Planejamento da cidade. Um dos responsáveis pela lei que estabelece limites para a altura de prédios em São Paulo, ele acha que é preciso coibir a especulação imobiliária – a cidade tem um limite para comportar o adensamento populacional que vem com os prédios – e minimizar medidas agressivas de segurança.

“O problema da insegurança existe. Mas há um exagero, uma certa paranoia”, afirma. Vivendo na mesma casa com paredes de vidro desde 1967, há alguns meses ele viu o sistema que criou para proteger a família – um muro de 2 metros e um trio de guardas de rua – falhar pela primeira vez em mais de 40 anos. “Agora temos câmeras e sensor de presença, mas continuamos andando na rua e tendo uma vida comunitária.”

O urbanismo que reflete o clima de insegurança, ele alerta, também pode exacerbá-lo. “A própria polícia diz que quem tem muro muito alto acaba atraindo o ladrão. Por isso, defendo e pratico a moderação: fazer o mínimo necessário pela segurança, para não agredir a sociedade e não se agredir. Porque a pessoa que está enclausurada numa muralha está se agredindo. Ela se aprisionou.”

Desconfiança

A sensação de aprisionamento entre janelas gradeadas, espaços estrangulados e muros altíssimos é um dos temas principais de O som ao redor (2011), o premiado longa-metragem de estreia do cineasta pernambucano Kleber Mendoça Filho. A feia “estética da segurança” que vai dominando as cidades brasileiras fascina o diretor. Desde os anos 90 ele se inspira nos bairros de classe média transformados pelo avanço descontrolado da especulação imobiliária, principalmente Setúbal, no Recife, onde mora.

“Para mim, esses obstáculos – grades, muros – têm um significado muito rico. São superagressivos, uma demonstração física e arquitetônica de desconfiança em relação ao outro. Se você coloca um muro de 4 metros na sua casa antes que qualquer coisa aconteça, o que está dizendo é que não gosta do mundo e que não tem a menor confiança na sociedade brasileira.” Além de não gerar tranquilidade necessariamente, a atitude não colabora “para uma ideia mais humana de cidade”.

Muros altos e grades são lamentáveis, mas uma tendência sem volta, acredita o cineasta Fernando Meirelles. “Numa cidade grande e impessoal como São Paulo, acho compreensível que se criem comunidades menores”. Adepto da “slow-life” (“Me recuso a viver como se tivesse de tirar o pai da forca todo dia”), o diretor de Cidade de Deus também criou sua própria comunidade. Só que sem muros: há 20 anos, divide com amigos um sítio perto de São Paulo.

“A ideia era termos um espaço maior para morar e criar nossos filhos mais soltos”, conta. Uma cerca separa a propriedade do entorno, e não há nada além de verde entre as casas. No único acesso, uma rua sem saída, uma guarita com segurança serve de portaria. “Nunca dei muita bola para segurança. Nossa cerca é baixa, minha casa tem dez portas que dão para fora. Nunca houve incidente”.

O relato reforça o argumento daqueles que acham a discrição mais eficaz do que a fortificação, quando se trata de segurança. “Parecer rico é atrair predadores”, acredita o psicanalista carioca Francisco Daudt. “O mais rico dos meus clientes anda de metrô, odeia ser fotografado e desfruta de uma bela vida de perfil baixo.” Ele vai mais longe: “Auto-estima elevada é fonte de segurança, e se traduz numa linguagem corporal que transmite uma mensagem de força. Claro, não existem garantias para nada no mundo, mas as chances de uma pessoa segura de si não ser importunada aumentam muito.”

A relatividade da eficácia dos mecanismos de segurança alardeados pelos condomínios já foi objeto da fina ironia da dupla de arquitetos Isay Weinfeld e Marcio Kogan. O Muromóvel, um paredão de tijolo, espetos e cacos de vidro capaz de autoajustar sua altura aos índices de violência da cidade, foi uma das invenções que apresentaram na exposição Happyland Vol. 2, realizada no Museu da Casa Brasileira há quase dez anos. Outra era o Kit Assalto, uma mala com objetos de desejo falsificados, como relógio Rolex e cigarreira Louis Vuitton, para engambelar ladrões. 

Ocupar

Para além de muros e cercas, traços do próprio urbanismo brasileiro contribuem para esvaziar as ruas e aumentar a sensação de insegurança. O principal é um pensamento que prioriza o carro, e nunca o pedestre. “No centro de São Paulo, as calçadas estreitas, as grandes vias e os semáforos que abrem e fecham rápido demais expulsam as pessoas da rua”, diz o arquiteto e crítico Guilherme Wisnik. O atraso histórico dos transportes coletivos, que têm potencial para reduzir o número de veículos na rua e aproximar cidadãos e cidade, piora essa cena. Assim como o boom dos shoppings, tidos como mais seguros que o comércio de rua, outro elemento que traz vida às vias públicas.

Até que esses planos mudem, a ideia de reocupar o espaço urbano e reaver o convívio “de rua” surge como alternativa para reverter situações de abandono e insegurança. “A solução está na vida comunitária”, diz João Sette Whitaker, professor das faculdades de arquitetura da USP e do Mackenzie. Para mostrar que há uma “indústria do medo” que desestimula esse convívio, ele fez uma experiência: convocou duas alunas para testar a “sensação de segurança” do Morumbi, na zona oeste, e da rua Augusta, tida como perigosa, perto do centro. As meninas sentiram mais medo nas ruas muradas do Morumbi, desertas às 19 horas, do que entre as prostitutas, traficantes e frequentadores da noite que lotavam a Augusta às 23 horas.

“Até o final do século 20, vivia-se um otimismo em relação ao futuro da humanidade, o desenvolvimento tecnológico. Por uma série de motivos, incluindo o 11 de setembro, isso mudou. O medo é o dado do século 21”

A ocupação do “baixo Augusta”, área de prostituição tomada por estudantes e boêmios de classe média nos últimos anos, é um exemplo de reapropriação da cidade. Assim como a explosão da cultura da bicicleta e os protestos públicos de todo tipo – em 2011, São Paulo parou mais de 1000 vezes para deixar passar as manifestações, algo como três vezes ao dia. “As marchas, as festas no Minhocão, a Virada Cultural e o churrascão para marcar a polêmica sobre o metrô de Higienópolis são fatos positivos nesse cenário”, diz Dario Caldas. “A bicicultura, com gente usando o veículo para ir ao trabalho e famílias inteiras pedalando juntas, é muito importante em uma cidade sem espaços naturalmente democratizantes”.

Um mecanismo que ajudaria a melhorar a segurança na cidade pela ocupação seria tornar públicos os térreos de todos os seus edifícios, sugere Ciro Pirondi, professor da escola da Cidade. “É o que já acontece em Brasília”, ele diz. Outro é reciclar espaços urbanos degradados, como fez o arquiteto Guto Requena, colunista da Folha de S. Paulo, ao reformar um apartamento na chamada “ilha da Paulista”, uma sobra das obras viárias dos anos 1950 e 1960 no cruzamento das avenidas Paulista e Consolação. “Tem muita gente no meu quarteirão querendo fechar a rua, o que é ilegal, e colocar segurança, porque ali tem muito skatista, morador de rua. Mas negar a cidade não é a solução. A perseguição aos skatistas, por exemplo, é absurda. Eles são um dos grupos mais engajados na ocupação da cidade. E ocupar é bom.”

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