O professor que botou a polícia em recuperação
Professor de história natural em Niterói, sindicalista e deputado estadual em segundo mandato pelo PSOL (RJ), Marcelo Freixo ganhou destaque ao presidir a CPI das Milícias, que revelou à sociedade carioca a enorme e violentíssima rede criminosa que ainda hoje sustenta uma máfia que age dentro do Estado em muitas cidades e comunidades. A investigação, promovida em 2008, indiciou 225 pessoas, entre elas policiais e políticos, e colocou sua cabeça a prêmio, como era de se esperar.
Um dos principais atores no combate à corrupção no Brasil, foi como personagem que Freixo ganhou notoriedade nacional, ao servir de inspiração para a criação do personagem Diogo Fraga, o deputado combativo do filme Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro.
Na década de 1990, como diretor do sindicato dos professores, coordenou um projeto de educação popular dentro dos presídios, onde testemunhou as violações dos direitos humanos no sistema prisional, que passou a denunciar e, finalmente, foi encarregado de fiscalizar junto à Justiça. Essa experiência o gabaritou como interlocutor junto aos presos e, por dezenas de vezes, foi chamado para intermediar rebeliões nos presídios do Estado.
Como deputado, presidiu também a CPI que investigou o tráfico de armas, denunciou fraudes que levaram à cassação de outros parlamentares e aprovou projeto de lei de combate à tortura. Criou ainda projetos de lei reconhecendo o valor para a sociedade de expressões culturais nascidas longe da zona sul carioca, como o funk e as lan houses.
Reeleito deputado estadual em 2010, foi derrotado com o apoio de pouco mais de 900 mil pessoas (cerca de 30% votos dos válidos) na última eleição para a Prefeitura do Rio de Janeiro. É presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
Nada a perder
O currículo de Marcelo Freixo nos deixa imaginando que se trata de um sujeito que vive tenso, preocupado e mal-humorado. Essa imagem some quando a conversa com ele começa. Calmo e de fala tranquila, parece que ele sabe medir o tom de sua fala e de sua ações. Tudo tem o momento certo.
Antes da entrevista começar para valer, ele se diverte contando a história de como presenteava a avó com vinho sem que ninguém soubesse, entre outras histórias engraçadas. Mas até mesmo quando o assunto é sério ele não transparece abatimento.
O único momento em que Freixo parece ter dificuldade em contar é a história do assassinato de seu irmão. Uma história triste que marcou seu processo de decisão no que fazer da vida.
Durante o processo de reformulação do condomínio onde morava, Renato Freixo ajudava a resolver irregularidades que existiam. Uma delas era o grupo de segurança privada clandestino que cuidava do condomínio. O entrave para regularizar a situação rendeu ameaças, e um ano depois Renato foi assassinado. Embora não tenha ficado clara uma relação entre as ameaças e o crime, Freixo não aceitou a história. “Foi quando senti que não tinha nada a perder”, diz Freixo.
O crime aconteceu no ano em que Freixo assumiu o cargo de deputado estadual pela primeira vez. Militante há 20 anos, ele entrou na política partidária somente em 2005 para ajudar os amigos do PSOL, recém-formado na época. Entrou sem intenção de vencer, sem uma grande campanha, sem televisão. Afinal, aquele não era o plano de vida dele. Acabou sendo o mais votado do partido com 13 mil votos. No fim das contas foi o único deputado PSOL eleito, isolado em uma assembleia com fortes ligações as milícias.
Freixo conta que viu duas opções bem claras para seguir a vida. Poderia escolher fugir de qualquer responsabilidade e ir levando as coisas, sem tomar qualquer atitude. A outra opção era comprar um briga quase solitária com pessoas poderosas. Precisa dizer o que ele escolheu?
No terceiro dia de mandando ele propôs a CPI das Milícias. “Foi uma bomba. "Quem é esse maluco?", perguntavam”, ele relembra. Mas foi uma bomba que demorou a estourar. A CPI foi rejeitada sem grande repercussão. Demorou um ano e meio para que ela voltasse a ser pauta, graças a uma forte pressão da imprensa, que foi atingida quando alguns jornalistas do jornal O Dia foram torturados por milicianos. Ali a história pegou fogo e Freixo ganhou o espaço pelo qual é conhecido hoje, ajudando a mudar o paradigma da segurança do estado, mesmo que o caso não tenha sido resolvido em sua totalidade.
"Até hoje a gente tem que explicar que direitos humanos não é defender bandido. A negativa da humanidade é anterior a negativa de direitos"
Ao mesmo tempo, essa repercussão revelou a história de um homem que militava pelos direitos humanos muito antes da política. A história do flamenguista que teve uma infância simples, igual a de muitos garotos, mas com um detalhe especial.
Muito jovem, Freixo conheceu um presídio graças a turma com que jogava bola no bairro em que vivia na Zona Norte. Ele e os amigos alugavam o espaço para jogarem com um time que reunia gente da favela e do asfalto. “Eu fico imaginando hoje um jovem de 15 anos chegando e avisando a mãe que vai jogar bola no presidio. O juiz era sempre um preso e ninguém chamava ele de ladrão. Isso marcou minha juventude. Eu entrava ali sem a leitura de direitos humanos, mas o presídio deixou de ser algo nebuloso pra mim”.
Com pais que trabalhavam na escola pública, Freixo tinha o desejo de ser professor e uma oportunidade de estágio colocou de novo o presídio em sua vida. E ali, onde ele alega que aprendeu muito mais que ensinou, ele começou a trabalhar com educação em favelas.
Sua experiência na área o levou a trabalhar com o Bope em negociações de rebeliões. Freixo aceitava a missão, mas deixava claro uma condição. Solucionado o problema, o Bope não poderia cometer nenhum ato violento contra os presos. Freixo garante que em todas as vezes, e foram muitas, o acordo foi respeitado. Dessa época, o caso mais marcante que ele lembra é de uma grande rebelião em Bangu 3, onde ele sem querer acabou chamando pelo nome um dos presos que usava máscara. O golpe de sorte fez com que todos os rebelados mascarados mostrassem o rosto e facilitou a negociação, que durou ainda assim levou dois dias.
Também foi após uma rebelião que ele ouviu um conselho que carrega até hoje. “Alguém me disse 'Os presídios são um pedacinho da favela'. Aquilo era muito profundo e muito simples. Eu pensei no quanto meu trabalho tinha que somar na favela”, diz.
Quando pensa no Trip Transformadores, Freixo entende que a homenagem é relativa a esse trabalho e não por causa da política. A luta da vida de Freixo é pelos direitos humanos. Um briga que ele viu ganhar sentindo quando jogava bola na penitenciária, quando sentiu o baque da morte do irmão e quando recebeu o conselho de que as prisões são uma parte da favela. Uma briga em que ele é exemplo de força e resistência.
“Escolhi essas militâncias muito novo, ainda garoto, muito por acaso, ninguém escolhe essas militâncias na vida. É uma luta por um mundo mais justo. A luta pelos direitos humanos é pela dignidade humana. Simples, mas difícil. Sempre vai ter gente lutando. Resgatando isso. Nossa sociedade vive com o medo e com a intolerância. Até hoje a gente tem que explicar que direitos humanos não é defender bandido. A negativa da humanidade é anterior a negativa de direitos. É primário.”