Viva o blues de cada dia

por Carlos Nader
Trip #136

Que a mídia é burra ninguém duvida. Mas para nosso colunista midiático ela também é cega para algumas emoções: a imprensa não sabe que cor a melancolia tem

Há pouco tempo, meu filho teve que fazer um trabalho para a escola. Era o seguinte. Ele tinha que recortar, das páginas de revistas, algumas fotos em que as pessoas manifestassem estados de espírito variados. Coisa normal. Gente alegre, gente melancólica, gente assustada, gente eufórica, gente chorosa.

A casa toda se uniu na tarefa. O primeiro tema era "alegria". Começamos bem. Neguinho feliz e papel impresso foram feitos um para o outro. O mundo nunca esteve tão alegre. E, nesse primeiro quesito, a campeã dos achados foi a Vanusa, babá do meu filho, querida, ela mesma muito alegre. Depois de uma minuciosa pesquisa iconográfica em sua publicação preferida, a Caras, ela logo apareceu com um ensaio visual sofisticado sobre todos os matizes possíveis da felicidade humana.

No segundo quesito, o tempo mudou. Viramos páginas e páginas atrás de uma pessoa melancólica. Nada. Não serviam os sofrimentos violentos, as agonias sangrentas, os pesares lagrimosos. Isso até que tinha bastante. A mídia é bipolar, maníaco-depressiva, extrema. E nós queríamos só alguém tristinho. Não achamos nada. Nada na Veja, nada na Carta Capital, nada na Trip. E, claro, nada também na biblioteca de Caras da Vanusa, já que não é toda semana que morre o príncipe Rainier.

Abaixo os extremos

Não dá para dizer que a melancolia, na vida, seja exatamente um sentimento raro. Nem rasteiro. Ao longo da história, vários pensadores relevantes, de Aristóteles a Eduardo Giannetti, notaram que "os grandes desbravadores de todas as áreas da atividade humana costumam ter uma tendência à melancolia". A sensação da desesperança tende a ser uma companheira constante daqueles que fumam o mundo sem filtro.

Não estou propondo que o biscoitinho salgado da melancolia seja produzido em massa. Ao contrário, quando penso em meu próprio período infanto-juvenil, passado numa escola francesa dos anos 70, lembro que se me pedissem para pesquisar alguma coisa, não seria nas páginas da mídia, e sim nas da literatura, nas da arte erudita, onde a palavra "tristeza" é quase sinônimo da palavra "qualidade".

Uma reação alérgica a esse passado impede que eu me jogue de cabeça em qualquer culto à melancolia. Ao contrário, se eu acredito que há um fundamento em que a cultura de um Brasil profundo pode fazer diferença, é justamente na idéia de que a alegria tem uma dimensão bem menos rasa, bem menos vã do que imagina a filosofia ocidental.

Na imprensa, também não acho estranho que a cada mil páginas dedicadas à alegria, ou mesmo à violência, seja tão difícil encontrar uma só dedicada à melancolia. Faz parte do show. Mídia existe para isso mesmo. Tanto para comunicar quanto para gerar sensações. O esquisito é que a mídia ainda seja vendida como um espelho tradutor da realidade. Se fosse, como a arte ou a literatura, a mídia teria que dar muito mais espaço para sentimentos que são menos sensacionais, mas nem por isso menos humanos.

E, aos 44 do segundo tempo, foi a própria Vanusa, segurando uma Veja amanhecida, quem gritou: "Achei! Achei alguém tristinho!". Quem?! "É o poeta Ferreira Gullar", ela disse. De fato. Lá estava ele, posando macambúzio, justamente para uma matéria sobre candidatos brasileiros a grandes prêmios internacionais.

No contexto atual, de busca frenética de excitação, a atitude mansa do poeta se transforma num gesto transgressor. Obrigado, Ferreira Gullar. Por destoar do coro dos contentes. Por exercer o seu ofício de poeta em tempo integral. Por ajudar a manter, ainda que precariamente, a biodiversidade das sensações no espaço midiático.

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