Uma pai­xão mal resolvida

por Henrique Goldman
Trip #223

São Paulo é fisicamente um lugar detestável. Se fosse uma mulher, seria feia e amargurada

São Paulo é fisicamente um lugar detestável. Se fosse uma mulher, seria feia e amargurada. Mas o que é uma cidade se não as pessoas que a habitam? Nesse quesito, ela é maravilhosa

Moro fora de São Paulo há 32 anos. Mesmo de longe e depois de tanto tempo, São Paulo continua a definir minha vida. Penso muito – e muito intensamente – sobre a cidade. Mesmo de longe, vivo nela no Skype e nos meus sonhos diariamente. Implico com ela. A detesto, a adoro. Não a resolvo nunca. Quando cá estou, muitas vezes sinto vontade de fugir de novo – como fugi faz 32 anos –, mas, desta vez, para nunca mais voltar. Sinto uma falta animal dela num março chuvoso, quando estou no cinza londrino, e quero voltar a viver no Bom Retiro para sempre.

Me divirto imaginando São Paulo transposta para outras partes do mundo. Será que o bairro do Prenestino é a Mooca de Roma? Ou Newark a Guarulhos de Nova York? Será que o decorador do Beirute Express, restaurante ladrilhado na Edgware Road em Londres, é o equivalente local do Frevinho da Oscar Freire? Qual seria o Pari de Paris?

São Paulo é sem dúvidas, fisicamente, um lugar detestável. Se fosse uma mulher, a cidade seria uma gorda mórbida, vesga e careca. Teria um mau hálito nauseabundo e um sovaco putrefato. Seria violenta e amargurada. Os últimos anos de boom econômico só a teriam feito embarangar mais. Nenhuma canção de Adoniran Barbosa, Caetano Veloso ou Criolo podem verdadeiramente redimir esse horror.

Sushi e feijoada

Mas o que é uma cidade se não o conjunto das pessoas que a habitam? E nesse quesito São Paulo é, para mim, uma cidade maravilhosa e, paradoxalmente, muito humana. Adoro a moça humilde com aparelho nos dentes que me atende no cartório e faz o reconhecimento de firma sorrindo para o meu filho. Adoro até o motorista de táxi evangélico de direita com sotaque caipira num carro todo incrementado, orgulhoso com seu tablet. Acima de tudo, adoro os intraduzíveis restaurantes por quilo, onde se pode comer filet Aparmajiana (escrito assim), sushi e feijoada no mesmo prato. Onde mais se pode encontrar algo assim?

Amo São Paulo. Que bom seria estar aqui para sempre. Que bom dela fugir.

*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br
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