Corra, Fernanda, corra

por Gustavo Ziller

A ultramaratonista mineira Fernanda Maciel é a primeira mulher a subir correndo o Monte Aconcágua em menos de 24 horas

Eu tenho uma meta digamos que atrevida na minha passagem pela Terra: conhecer o maior número de pessoas inesperadamente extraordinárias. Fernanda Maciel se enquadra perfeitamente nisso. Quando a Trip me convidou para escrever sobre o triplo recorde conquistado pela Fê, aceitei na hora. Mas com uma ressalva. Tinha que encontra-la ao vivo, em carne e osso. Olhar no olho dela, trocar energia, entender de onde veio o sonho de subir correndo e descer correndo a maior montanha da América do Sul, a maior do mundo fora dos Himalaias, o Aconcágua.

Fernanda fez o trajeto em incríveis 22horas e 52 minutos. Partindo no dia 20 de fevereiro de Horcones, na entrada do Parque do Aconcágua (2.950 metros), chegando ao cume da montanha (6.962 metros) e voltando para Horcones no dia 21 de fevereiro. “Eu gosto é de correr, Ziller”, disse ela quando me encontrou dia 24 de fevereiro em Belo Horizonte, apenas três dias após se tornar a primeira mulher a estabelecer o recorde. E claro, a primeira brasileira - e de quebra, a primeira em menos de 24 horas.

Com exceção de um dedão do pé congelado e completa falta de sensibilidade na ponta dos dedos das mãos, ela estava linda, inteira e satisfeita.

Fernanda é hoje uma das cinco principais atletas de sua modalidade no mundo, a ultramaratona. E, sem exagero, é a principal atleta brasileira em esportes extremos. Ela nasceu em Belo Horizonte (é cria das montanhas de Minas Gerais) e se formou em Direito com foco em ambientalismo. Até pouco tempo conciliava a profissão com provas de ultramaratona pelo mundo. Começou a correr muito cedo, pasme, a caminho da escola onde fez o ensino médio. “Eu não queria pedir dinheiro pro meu pai pro ônibus, então descia a pé e voltava correndo da escola”, conta.

Essa mania a fez disputar provas de asfalto (trechos de 10km), depois meias maratonas, e maratonas. Então ela conheceu um programa de TV, o Aventura no Cipó, e aos 20 e poucos anos se jogou na Lapinha, Serra do Cipó, onde o programa era filmado. Rolou paixão imediata pelos esportes ao ar livre. Hoje, aos 36, ela fala do início no esporte com uma energia única. Matheus, um amigo em comum, me disse um dia, “Ziller, a Fernanda é incansável!”.

Fernanda não é, ela está. Sabe que a vida é momento, e o verbo ‘estar’ faz muito mais sentido para ela do que o ‘ser’. Ela está empresária (representa a CompresSport no Brasil) e está ultramaratonista. O empreendedorismo culminou no projeto White Flow, em que ela dedica tempo e esforço para saciar sua busca pelo improvável. O primeiro White Flow foi correr os 860 km do Caminho de Santiago em 10 dias, o segundo foi correr pela Rocinha no Rio de Janeiro, no melhor estilo Forrest Gump. O terceiro foi participar da  Everest Trail Race (160km pelo Vale do Khumbu). E o quarto foi o projeto Aconcágua e a consequente quebra do recorde mundial.

Ela fez a primeira tentativa do Aconcágua no ano passado e desistiu próximo ao acampamento avançado 3, a 6 mil metros de altitude. “Você aprende na prática. Sobe quilômentros na montanha e tem sensações horríveis. Faz de novo e evolui, entende o corpo.” Houveram mais duas tentativas antes de conquistar o recorde.

Este ano ela recebeu o telefonema derradeiro, ‘Fe, temos uma janela, corre pra cá’, disse seu guia e fiél escudeiro, o argentino Alejandro Pereira (Cabeça). Ele usou a palavra mágica pra acionar o instinto primário da Fernanda, corre pra cá! Dois dias depois lá estava ela, dessa vez em Horcones, para tentar o recorde mundial.

Passou por Confluência (3.380m), o primeiro acampamento da montanha. De lá entrou num vale conhecido por montanhistas pela intensidade física do trajeto, a Playa Ancha, ou Praia Larga. Esse vale desemboca numa subida cruel antes do Campo Base (Plaza de Mulas), a Cuesta Brava. Venceu Brava e chegou à Mulas (4.300m).

Sentia-se bem, muito bem.

Seguiu para o primeiro acampamento avançado, Plaza Canadá, a 5.050 metros de altitude. E ali, já não estava passando bem, “corria no escuro, minha visão estava comprometida, me sentia bebada, um pouco de náusea e incomodo por não controlar o trajeto”, contou ela. “Mas mantive o passo de vovó, bem devagar até o próximo ponto de controle”. Então atingiu o acampamento avançado 2, Nido de Condores (5.550m). 

Naquela altura, Fernanda estava em uma região extremamente delicada da montanha, onde ventos irritantes cortam a crista do Aconcágua e literalmente atropelam montanhistas desavisados. Ela aumentou o passo, respeitando seu limite e atingiu a região onde havia desistido em outras duas ocasiões, em 2015 e na primeira tentativa de 2016. “Eu cheguei em Plaza Independencia surpreendentemente bem. Estava no melhor da forma, me sentia um passarinho. Aquela energia me jogou pro cume!”

A partir desse ponto, ela não correu pra se tornar uma lenda do esporte. 

Correu simplesmente porque corre. Cravou seu nome na história como a primeira mulher e brasileira a realizar tal façanha e estipular o primeiro recorde mundial. O que você pensou quando chegou de volta a Horcones? “Na minha família e amigos”, responde.

Fernanda está detentora do recorde mundial com o tempo de 22h52min e já está pensando no próximo projeto White Flow. Agora segue pra casa, uma vila de 80 pessoas na Espanha, a qual chama carinhosamente de ‘minha cueva’ [minha caverna].

Corra, Fernanda, corra. Sua felicidade é nossa.

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