A incrível saga de um dos maiores esportistas do mundo, revelada em uma entrevista exclusiva com seu irmão e biógrafo Nick Carrol
Um bicampeão mundial de surf, ídolo da cultura de praia dos anos 80 e 90, mergulha fundo no inferno das drogas – precisamente, cocaína e metanfetamina – e sai vivo para contar a história. Ela é contada por seu irmão jornalista, que, além da visão privilegiada dos fatos, tem a vantagem de ser um dos maiores conhecedores desse esporte no mundo. A junção de Tom e Nick Carroll deu origem a um livro imperdível, recém-lançado. O encontro de Nick com a Trip na Austrália, em janeiro, virou a conversa igualmente potente que está nas páginas a seguir
Apesar de pontuar suas falas com uma risada algo nervosa e meio fora de tom, Nick Carroll parece ter encontrado certo equilíbrio aos 54 anos de idade. Do ponto de vista físico, não resta nenhuma dúvida. Seu corpo continua leve, exibindo uma combinação pouco vista nesta fase da vida. Musculatura tonificada com baixa presença de gordura, numa caixa compacta, de estatura pequena. O rosto tem a moldura quadrada acentuada pelas mandíbulas proeminentes, barba cerrada e os cabelos restantes nas laterais da cabeça raspados rente ao couro.
Enquanto o escuto falar, nos fundos de um simpático café na praia de Newport, um dos belos subúrbios ao norte de Sydney, onde cresceu e vive até hoje, vejo que, ainda que sua aparência tenha mudado pouco desde quando fomos apresentados, no inverno havaiano de 89-90, a maturidade aparece em cada uma de suas frases, no ritmo tranquilo de sua respiração e na maneira de ler e compreender a vida e o mundo. A morte da mãe quando tinha apenas 9 anos, o simples correr do tempo, as horas e horas passadas sozinho no mar, as duas filhas, a atividade física, os livros, o casamento... Certamente são parcelas da soma de razões que resulta na clareza e na fluidez de seus pensamentos sobre a vida. Mas é muito provável que um fato tenha acelerado de forma decisiva esse processo: Tom Carroll, irmão mais novo de Nick, ex-bicampeão mundial de surf, um dos atletas mais importantes e festejados da Austrália e um ídolo mundial da cultura de praia nos anos 80 e 90, abraçou a cocaína com toda a força para, depois de alguns anos, se viciar em ice, uma espécie de versão de luxo do crack, mais conhecida nos meios científicos e policiais como metanfetamina.
Assim como os efeitos do primo pobre, os do ice são mais que devastadores. Seu poder de adição é fortíssimo, e a capacidade de danificar rápida e violentamente o cérebro e o organismo como um todo é igualada por pouquíssimas substâncias conhecidas. As fotos de usuários “antes e depois” são aterrorizantes. Sem conjecturar o que acontece com a alma do adicto...
Lidar com a impotência do irmão superatleta diante da droga, com as razões que o levaram a ela, viver seu drama e tentar trazê-lo de volta. Todo esse périplo conduziu Nick a um mergulho fundo e arriscado numa espécie de pântano embolado e gigante de dilemas éticos, campos movediços e emoções confusas. Da descoberta de traços de desequilíbrios psicológicos e de envolvimento com substâncias estupefacientes nos galhos mais altos da própria árvore genealógica ao questionamentos profundos sobre o próprio mundo que ajudou a criar e no qual vive até hoje, a cena profissional do surf, muita água correu nesse swell. Da revisão profunda das noções de sucesso e fracasso à dificílima experiência de expor publicamente as mazelas do irmão, dos amigos, da família e dele próprio. Nick parece ter saído desse mergulho um sujeito muito melhor. Está leve. Dá a impressão de ter exorcizado boa parte dos demônios que rondavam seu mundo nos últimos anos. E o principal instrumento utilizado para a execução desse complexo ritual de lavagem de alma é, ao mesmo tempo, um sucesso de crítica e de público. Lançado na Austrália em novembro do ano passado e prestes a sair nos EUA, TC, o livro escrito por ele, alterna em cerca de 300 páginas a visão dos dois irmãos sobre tudo o que viveram desde a infância até os dias mais calmos de hoje. As glórias conquistadas por ambos, a realidade acachapante dos bastidores do mundo do surf profissional e, claro, uma descrição detalhada de cada milímetro das paredes e do chão do fundo do poço da metanfetamina.
Como ele mesmo diz, “nenhuma pedra ficou no lugar onde estava”. TC já vendeu mais de 100 mil exemplares em poucas semanas. O número já coloca a obra dos Carroll como a peça de literatura ligada ao surf mais vendida na história australiana. E isso não é pouco nesse quase continente onde praticamente todos descendem de gente que se dispôs a lutar pela vida encarando e decifrando o mar, e no qual existem pelo menos duas publicações dedicadas exclusivamente a analisar o universo literário e artístico com inspiração no oceano.
Surf races
Muito importante frisar: num universo de pouquíssimas unanimidades, Nick Carroll é considerado, por praticamente todo sujeito que tenha molhado o pé na água salgada e prestado a mínima atenção no mundo do surf nas últimas três décadas, o mais preparado, atuante e competente jornalista especializado nesse esporte do mundo. Mas sua capacidade vai bem além disso. Desde o início de sua carreira, quando emplacou seu primeiro trabalho, uma entrevista com o lendário surfista Gerry Lopez publicada na revista People em 1975, Nick sempre logrou saltar para além do cercado da praia, com um currículo que registra artigos e ensaios em verdadeiras instituições da mídia, roteiros para documentários, filmes, entre muitas outras obras notáveis.
Ah, outro detalhe: entre suas horas de trabalho no pequeno escritório que mantém a cerca de cem passos da praia de Newport, numa sala simpática separada por apenas uma parede do gabinete de outra lenda do panteão praiano mundial, o cineasta Jack McCoy, Nick consegue tempo para surfar quase todos os dias do ano – seja na frente de casa, na Indonésia ou no Havaí – ondas de 2 a 20 pés e ainda para desempenhar a função de treinador da equipe campeã nacional das tradicionalíssimas e quase sagradas surf races, espécies de triatlos praianos disputados no mar entre salva-vidas e superatletas, que reúnem corrida na areia, natação e remada em diferentes tipos de instrumentos flutuantes.
"No processo de reabilitação, Tom voltou a ser parecido com a pessoa que era antes, crescendo e aceitando suas responsabilidades. Hoje provavelmente estamos mais próximos do que nunca"
Quanto a Tom, ele parece estar limpo e bem. No dia seguinte à entrevista, podia ser visto sentado na traseira de seu Mini Cooper no estacionamento da sua velha e boa Newport Beach. Ao mesmo tempo em que autografava livros trazidos por quem o reconhecia, preparava sua pranchinha fish de menos de 6 pés para uma queda num mar horrível, com ondas na altura do tornozelo, num swell miserável de vento soprando on shore e forte. Sinal claro de que está no apetite e de que o contato com o mar continua tão íntimo como quando o moleque baixinho cheio de sardas na cara e com short justo que realçava os quadríceps de jogador de futebol encarava e destruía Pipeline, Cloudbreak, G-land e qualquer outra onda assustadora como se fossem as merrecas daquele dia. Além disso, ao lado do amigo de infância e artista das ondas igualmente talentoso Ross Clarke Jones, protagoniza uma série para a TV chamada Storm Surfers, na qual, em resumo, a dupla se joga nas ondas mais difíceis, quadradas, dentuças, impensáveis e aterrorizantes que o planeta é capaz de produzir.
A conversa com Nick na mesa dos fundos daquele café na Barenjoey Road no final de janeiro sobre a vida, pranchas de surf (ele é considerado um ph.D. no assunto e está para uma Channel Island assim como Robert Parker está para um Château Margaux), drogas pesadas, inveja, fama, surfistas brasileiros, corpo, felicidade, família e, claro, a busca por reviver o passado que norteia esta edição da Trip é o que você vai ver nas próximas páginas.
As relações entre irmãos tendem a ser complexas. E nem sempre são amistosas. Como você descreveria a sua com Tom? Tom e eu temos uma relação muito complexa. É uma relação intensa, marcada por duas experiências de vida profundamente interligadas.
Qual é a diferença de idade entre vocês? Dois anos e meio.
Quantos anos você tem agora? Tenho 54 e Tom, 52. No livro que escrevi foi difícil descrever essa relação. Optei por fragmentar o texto alternando segmentos sobre mim e sobre Tom para que o leitor pudesse entender a relação entre os dois se formando e ganhando contornos conforme crescíamos juntos. As circunstâncias a fizeram extremamente complexa. Ele era o irmãozinho mais novo, mas costumávamos brigar muito quando pequenos. Nossa família foi muito traumatizada pela morte prematura da minha mãe. E realmente se tornou meu dever na vida cuidar do Tom. Seria muito fácil as pessoas pensarem, tendo ele conseguido muito sucesso como surfista profissional e eu não, que eu me ressentiria, mas isso nunca rolou. O que eu lamentava era justamente ver que havia essa percepção das pessoas a nosso respeito. Entre Tom e eu, ressentimentos desse tipo nunca existiram.
Como está a relação hoje? Ela mudou bastante nos últimos sete, oito anos. Desde que Tom entrou na reabilitação, ficou “limpo” e entrou num processo de crescimento. Antes disso, tivemos períodos de muita distância. Por muito tempo eu não tinha ideia de que ele usava drogas. E ele tinha tanta vergonha daquilo que não conseguia falar. Até que ele percebeu o que estava fazendo e quis parar com tudo. No processo de reabilitação, percorrendo o caminho dos 12 passos dos Narcóticos Anônimos, Tom voltou a ser parecido com a pessoa que era antes, ao mesmo tempo crescendo e aceitando suas responsabilidades. Hoje provavelmente estamos mais próximos do que nunca.
Até que ponto o livro expõe a realidade total? É completamente revelador. A narrativa fica indo e voltando, alternando minha voz e a dele. Posso dizer que falamos tudo. Não ficou pedra sem ser revirada.
Quando ele descobriu que precisava de ajuda para lidar com as drogas? Os problemas tinham muitas fontes e raízes. Uma das maiores era a cultura meio tosca do surf dos anos 70, 80 e 90, em que o uso de drogas era quase obrigatório. Nos anos 80 isso cresceu, havia a sensação de que a cena do surf profissional era um ambiente charmoso e livre. Os surfistas viajavam pelo mundo e eram celebrados e mimados por todos por serem figuras “fantásticas”. Não ganhavam caminhões de dinheiro, mas tinham o suficiente. Ficavam uma semana em cada lugar e iam embora. Era um cenário sob encomenda para tudo isso acontecer. Indo além, muitos dos maiores surfistas dos anos 70, como nosso ídolo Michael Peterson, eram usuários recorrentes de drogas. Jimi Hendrix... Pessoas que considerávamos heróis na nossa cultura. Parecia normal usar drogas. E acho que o efeito da perda da nossa mãe quando éramos muito novos também ajudou.
Como foi esse período? Minha irmã era um pouco mais velha e talvez tenha lidado melhor com o fato. Talvez as mulheres sejam mais “socialmente treinadas” para lidar com sentimentos mais sutis. Eu não sabia como sofrer. Lembro da minha mãe claramente, mas Tom era muito novo quando ela morreu, tinha 7 anos. E antes disso ela esteve doente por muito tempo. Acho que a morte dela deixou um buraco negro nele. Surfar o preencheu por um tempo, em algum grau, mas não inteiramente. E há o fator genético, minha mãe teve problemas com anfetaminas.
"Tom se aposentou em 1994. Acho que o que mais o afetou nem foi deixar de ser famoso, mas o simples fato de não ter nada pra fazer. [...] Você precisa de algo para levar adiante sua vida. Senão, vai ficar lá trabado com suas memórias e seus troféus"
Você tem lembranças disso? Não sabíamos disso até Tom ir para a reabilitação. Isso nos fez cavar o passado e revirar até antigos arquivos hospitalares. Tom não conseguia parar com a cocaína. Ele não conseguia ter uma visão mais analítica daquilo tudo nem se ver longe da fama por muito tempo. Além disso, as drogas em si mudaram ao longo dos anos. O que realmente derrubou Tom e o deixou de joelhos foi o ice [um dos nomes populares da metanfetamina]. Ele começou a usar essa droga como uma espécie de reação à ideia de crescer e amadurecer. Estava com três filhos pequenos, vivendo numa casa cara, cheio de responsabilidades, uma pressão enorme. O ice representava um escape, mas ao mesmo tempo ia destruindo sua vida. Até que ele percebeu que não iria longe e que aquilo custaria tudo o que havia conquistado. Custou seu casamento, por exemplo. E a casa maravilhosa que ele tinha na montanha e precisou ser vendida. Felizmente ele conseguiu reconstruir o relacionamento com as filhas. Amadureceu de uma forma que eu achei que nunca fosse acontecer.
O que aconteceu com ele quando se aposentou e deixou o centro do palco no cenário do surf profissional? Tom se aposentou do circuito profissional em 1994. Sentia que era a hora certa, mas não conseguiu prever as reais implicações disso. Acho que o que mais o afetou nem foi deixar de ser famoso, mas o simples fato de não ter nada para fazer. Como profissional do surf, você tem uma missão. Um campeonato a cada duas semanas. Há um ritmo. De repente você aperta um botão e tudo acaba. Surge um vazio enorme. Acho que, hoje, os profissionais desse esporte estão mais espertos sobre esse assunto. Não havia muitos aposentados do surf profissional naquele tempo. Muitos pararam por um tempo, mas logo voltaram. Occy [apelido do australiano Mark Occhilupo, um dos maiores nomes do surf profissional em todos os tempos] voltou porque estava quase surtando. Tom achou que era a hora de parar. Tinha tido a terceira filha e não sentia mais a mesma compulsão por ganhar baterias. Mas acabou sozinho em casa, sem trabalhar. Todos de sua idade tinham trabalhos reais, uma rotina produtiva.
É possível se preparar bem para isso? Ah, certamente. Há vários exemplos de profissionais que saíram da cena nos últimos dez, 12 anos, e seguiram o caminho certo. Tenha certeza de que você tem algo para fazer, esteja realmente convencido de que não quer mais competir. Isso é muito importante. E você precisa de algo pra fazer, de um lugar pra ir. Algo pra levar adiante na sua vida. Se não tiver essas coisas reais, vai ficar lá travado com suas memórias e seus troféus. Não sei como Kelly Slater vai lidar com isso [risos].
Muitas pessoas famosas parecem não conseguir viver sem gente ao redor, sem a aprovação dos outros. Como é isso no mundo do surf? Não posso falar por todo mundo. Com o Tom, sei que fama não era algo que lhe interessava muito. Ele arrumou um agente quando era novo, uma figura bem centrada que realmente viu uma oportunidade no surf para o meu irmão. Tom é talentoso, humilde, muito honesto com as regras e com as pessoas, uma combinação que vale ouro para um atleta profissional. O agente sacou isso e trabalhou muito. Realmente fez do Tom um superstar. Funcionou, mas acho que isso confundiu Tom um pouco.
Como foi a relação entre vocês durante a produção do livro? Maravilhosa! Como jornalista, eu raramente entrevistei o Tom durante sua carreira, em parte porque sentia que conhecia o que estava acontecendo na vida dele mais do que seria necessário. Então, no início do processo desse livro, passei seis meses entrevistando meu irmão. Às vezes eram três ou quatro entrevistas por semana, outras vezes apenas uma na semana. Foi um longo período de entrevistas.
Você mostrou o livro para ele antes? Qual foi a reação? Sim. Ele não falou nada. Era estranho, quanto mais eu escrevia, mais eu descobria coisas espantosas. O assunto era muito delicado e íntimo, havia segredos de família guardados por muito tempo. Tom tinha livre acesso ao manuscrito, mas ele evitava [risos]. Era uma coisa grande, emotiva. Estávamos expondo tudo, pela primeira vez. Como é usar ice, as dificuldades do processo de reabilitação, as pessoas que ele feriu ao longo dos anos. Olhando o livro ele tinha aquela expressão de “Caramba, acho que não devíamos ter feito essa merda...” [risos]. Mas era tarde demais para voltarmos atrás.
Como você acha que o corpo dele foi afetado por todas as agressões? É difícil saber o quanto as drogas interferiram nisso. Acho que mentalmente as consequências foram piores. Os efeitos físicos talvez tenham sido mais sutis. Tom se sentia mal com as contusões crônicas, tinha um joelho detonado, passou por muitas cirurgias desde os 19 anos. Isso afetou seu surf nos últimos anos da carreira. Mas o grande desafio físico foi ter que mudar de um estilo baseado na adrenalina, em desafios extremos, para algo mais baseado no cortisol. Uma coisa mais calma, relax, de pensar antes de agir. Ele está um pouquinho mais pesado do que era. Seus movimentos são diferentes hoje. É interessante ver que ele até anda de um jeito mais calmo. Tem a ver com o fato de pensar mais antes de se mover.
Antes, quando estava se preparando para ser o surfista perfeito, que espécie de treino ele fazia? Ele fez um treino com pesos quando voltou da cirurgia no joelho, aos 19, e descobriu ali o que o trabalho com pesos na academia podia fazer por seu corpo. Também fez muito trabalho aeróbico e de flexibilidade. E tinha uma dieta rígida, fez macrobiótica. Por muitos anos era um cara que carregava pouquíssima gordura no corpo. Ele continuou trabalhando com pesos, mas logo se adaptou ao que hoje as pessoas chamam de ginástica funcional, com bola suíça, pesos leves, faixas elásticas, barras. E também fazia ioga pra corrigir sua postura.
Mudando de assunto: esta edição trata de certa tendência a recuperar coisas e valores do passado. Você faz algum tipo de reflexão sobre por que existe toda essa nostalgia agora? O que as pessoas estão perseguindo ao se voltarem ao passado? Cara, tenho pensado sobre isso. É interessante. Fico pensando se não estão um pouco assustados com o presente e com o futuro, como se não vissem muito para onde ir. O presente é uma coisa complicada, então vamos virar pra trás e ver se há algo ali para recuperar e nos ajudar a lidar com as complexidades da vida. Acho meio triste e ilusório. Por exemplo, se você for um jovem surfista, como diabos vai conseguir surfar melhor do que um Kelly Slater, um Joel Parkinson, esses caras? Como vai chegar ao topo? Você precisaria ser um John John Florence, um garoto que começou a surfar aos 3 anos, passou a vida inteira em Pipeline e não fez absolutamente nada além de se preparar para ser o melhor por 15 anos. Entende? Então vamos olhar pra trás, para 30, 40 anos atrás. Será que havia mesmo algo lá que fazia mais sentido e poderia dar um rumo ou uma sustentação mais consistente para nossas vidas? Eu acho que não. As pessoas só queriam ver até que ponto podiam ir. Mas, apesar de tudo, olhar para o passado procurando alguma consistência tem valor também.
Pode ter a ver com certa saturação do modelo em que tudo é mercado, consumo? Não sei. O comercialismo do mundo moderno já estava presente nesse passado recente. Faz tempo que é assim. Nos anos 50 já era assim, em certa dose. Mas acho, sim, que o mundo nunca esteve tão complexo.
Você é reconhecido como um dos maiores especialistas em pranchas de surf no mundo. Qual é afinal a ciência, a lógica por trás delas? Acho que a única coisa que consegui concluir sobre pranchas é o seguinte: quanto mais simples melhor [risos].
O que caras com pranchas antigas ou inspiradas no design antigo estão buscando? O sentimento que não existe nas pranchas modernas. Muitas delas são legais agora porque também estão se beneficiando de toda a evolução do design, que vem acontecendo desde 1974.
Como as bicicletas? Exatamente. Essas bicicletas que não têm marchas são muito legais. Tudo é high-tech, mesmo parecendo simples. Elas custam US$ 400 e duram pra sempre. Não era assim com as bicicletas de 1974 [risos]. Algumas coisas são muito boas sob esse ponto de vista, mas, novamente, é como se as pessoas sentissem que aquela época é de algum modo mais autêntica e que hoje somos menos. Isso é um pouco triste, talvez seja um erro. O passado já foi o presente não autêntico. Tenho certeza que as pessoas em 1974 pensavam que o surf estava uma merda por não ser como nos anos 60.
"O comercialismo do mundo moderno já estava presente num passado recente. Faz tempo que é assim. Nos anos 50 já era assim, em certa dose. Mas acho, sim, que o mundo nunca esteve tão complexo"
Sua percepção não pode estar influenciada pelo fato de viver num lugar onde o lifestyle mudou pouco nas últimas décadas? Onde não há trânsito, poluição, pobreza... A praia está limpa, as pessoas voltam do trabalho às 5 da tarde com um bom dinheiro e tempo para curtir. Sim, é verdade. Mas esses valores ainda podem existir, você tem que procurar por eles. Onde estavam no passado, onde estão agora? O que era valioso de fato? Quais as armadilhas escondidas? O que interessava às pessoas antes e que se perdeu? O que queremos pras nossas vidas? Não acho que vamos encontrar essas coisas nos brinquedos, nos bens materiais. É preciso ser alegre aqui dentro, no coração, provavelmente com sua família.
Que tipo de espiritualidade você e o Tom desenvolveram? Nenhum de nós era muito ligado a religião. Pensei muito sobre isso, não sei se Tom pensou. Ele achou que devia se tornar meio religioso quando largou as drogas. Pensou que seria a única maneira de parar com elas. Mas acho que ele encararia de forma bem diferente se não estivesse precisando tanto. Ele achava a noção de Deus muito dogmática, que leva a muitos julgamentos. A ideia de algo espiritual para nós surge de experiências da família, da ideia de que somos partes de um fluxo de gerações de pessoas conectadas... E de nossas experiências no oceano. O mar nos mostrou a presença de algo maior que nós. Todos têm de ter uma referência de algo maior, que mostre seu lugar em relação ao mundo. Se você pensa que é a maior coisa no universo, vai ter problemas em algum momento [risos].
O que o surf ensinou a você sobre humildade? Pra ser sincero, por muito tempo não aprendi muito nesse sentido. Nós éramos os “locais” aqui em Newport, vivíamos botando as pessoas pra correr, expulsando da água e outras idiotices. Era engraçado porque indo a outros lugares tínhamos que mostrar respeito pelas pessoas de lá. Com o tempo fomos adotando outro comportamento, mostrando respeito, ficando mais em silêncio, no nosso canto, na fila. E, independentemente disso, tanto eu quanto Tom fomos nos tornando enormemente humildes diante do oceano. Ele já nos mostrou inúmeras vezes quem manda no jogo. Já nos deu muita porrada. Provavelmente, ele vai nos matar um dia. Na verdade, acho que tem bem mais chance dele matar o Tom antes [risos].
Alguma vez você se sentiu preso numa espécie de cerca profissional, como jornalista ou escritor, por estar tão vinculado ao mundo do surf e do esporte? Ah, com certeza. Sempre tentei me resguardar disso escrevendo só sobre as coisas que realmente amo no surf, coisas que eu observava melhor do ângulo em que estava ou que valiam a pena ser ditas. Mas é fácil se sentir numa gaiola. Por isso passei um tempo trabalhando fora do surf também. Escrevi documentários pra TV, experiências interessantes com cinema, pratiquei o jornalismo fora do surf. Gosto disso. De ir e vir nesse cercado. Confesso que minha tolerância para assuntos do surf não tem crescido muito. Não quis, por exemplo, cobrir o Pipe Masters no Havaí este ano. Porra, fazer isso de novo? Talvez daqui a uns anos valha a pena novamente.
Vamos falar de novo sobre pranchas. Uns anos atrás, entrevistamos o Robert Parker, aquele sujeito que dá notas aos melhores vinhos do mundo. Ele disse que 99,9% do que é escrito sobre vinhos é bobagem, incluindo o que ele escreve... [risos]. É mais ou menos assim com as pranchas.
E essa coisa relativamente nova da medida do volume como forma de entender melhor as pranchas? É mais sobre superfície, na verdade. As máquinas de shapes computadorizadas conseguem dizer com exatidão quanto de espuma existe, quantos litros numa prancha, então de repente o volume se tornou uma grande coisa. Mas é só uma informação a mais num universo muito complexo. Você facilmente fica preso a esse pensamento do volume, imaginando que seja uma das coisas principais, mas, porra, não é verdade.
O que você faz para se manter em forma? Aqui na Austrália o surf racing é um grande esporte. Envolve natação, remadas em pranchas e em surf skis, corrida na areia. Fazemos espécies de raias no mar e na areia para uma corrida envolvendo essas modalidades. Na Austrália, há centenas de milhares de pessoas nesse esporte. Eu sou o técnico da equipe aqui em Newport. Para treiná-los, comecei a nadar bastante, remar e todas essas coisas. Além do surf.
Você vai à academia? Não.
Você corre? Sim, um pouco. Gostaria de não ter que correr, mas não tenho escolha!
Como alguém que acompanha o surf profissional de perto há tantos anos, o que você diria sobre a nova cena brasileira – Medina, Adriano e outros caras? O surf profissional brasileiro vai se tornar uma força muito maior nos próximos dez ou 15 anos. Gabriel definitivamente é um dos grandes candidatos ao título de número um do mundo. Ficarei surpreso se ele não ganhar um ou dois títulos.
Uma coisa que me preocupa sobre os competidores brasileiros é que, olhando para trás, me parece que eles acabam esquecidos no próprio país. Me pergunto se isso está acontecendo agora. Eles surgem com grande impacto, mas são rapidamente esquecidos. Será que os brasileiros que já apareciam no ranking mundial em 1976 são lembrados hoje, como lembramos aqui de Mark Richards ou Michael Peterson? Será que os mais antigos estão vivos na memória das novas gerações de brasileiros? Se você não reconhece ou não valoriza o histórico de quem veio antes, fica difícil.
"Tanto eu quanto Tom fomos nos tornando enormemente humildes diante do oceano. Ele ja nos mostrou inúmeras vezes quem manda no jogo. Já nos deu muita porrada. Provavelmente ele vai nos matar um dia"
De que brasileiros do passado você se lembra? Cauli Rodrigues surfava muito, me lembro dele. De Joca [João Maurício] Jabour... Sei que agora o filho dele também é ótimo. Jojó de Olivença era muito foda, difícil de vencer. Era um surfista fantástico, épico, não sei onde ele está agora. Provavelmente foi esquecido, imagino. Tinha uma galera nos anos 90... Fabio Gouveia é um ótimo surfista, Flavio Padaratz tinha muita energia, Guilherme Herdy talvez tenha sido um pouco subavaliado. Era um maravilhoso surfista, ótima leitura de ondas. Me lembra um pouco os surfistas de agora, inclusive sua constituição física. Enfim, muitos caras bons. Sei que alguns, como Miguel Pupo, têm filho agora no circuito. Deve haver algo de genético nesse talento.
Você teve a chance de ver caras mais antigos como Pepe Lopes e Renan Pitangui no Havaí? Não, isso foi antes da minha geração. Vi Daniel Friedman, Rico de Souza. Daniel era impressionante, muito bom. Acho que saiu de cena quando chegamos.
Fui a Bali este ano para ver o Oakley Pro. Senti um clima diferente. Jovens atletas focados e pensando mais no dinheiro, em como aparecer na mídia. Minha sensação vendo Joel Parkinson vencer era de que ele é provavelmente o último cara a ter um olhar e um comportamento diferentes. Você enxerga isso? Sim, Joel vive um surf diferente, mantém em seu jeito muitas linhas familiares aos surfistas dos anos 70 e 80. Talvez hoje as coisas sejam mais afetadas pelo dinheiro. John John é um cara que me impressiona e parece não ter se deixado sugar pela loucura da fama. Seria fácil um garoto como ele ceder às tentações. Um monte de gente dizendo que você é demais...
Há um documentário chamado Happy que rodou o mundo tentando entender o sentido da felicidade. Qual seria sua definição de felicidade? É variável, não é algo que você deva procurar, mas algo que aparece. Se faz as coisas certas na vida, se cuida de você e de quem ama, a felicidade meio que aparece, é imprevisível. Todo mundo que vive uma vida ok sabe quais coisas, situações e pessoas trazem felicidade. No fundo, todos sabemos. Procurar é inútil. Você tem que ficar quieto e esperar ela chegar.
Você falou sobre a ideia da morte. Qual sua relação com ela? É difícil pensar que vamos morrer, lidar com isso, mas não há por que temer a morte. Tem algo interessante que dizem nos funerais cristãos: no meio da vida, temos a morte. É isso, não dá pra haver vida sem haver a morte. Mas aceitar a própria não é fácil. Não quero morrer, porra! [risos] O medo de morrer faz a gente se aproximar da vida quando alguém que amamos morre. Mas sempre há espaço para rir num funeral. Se a pessoa é importante pra você, sempre lembrará das risadas que deram juntos.
E quanto a ficar velho? Não é fácil abrir mão de algumas coisas. Mas minha experiência até agora tem me mostrado que todas as coisas de que tive que abrir mão criaram espaço para outras mais valiosas. Não queria surfar como surfava aos 20 anos, se para isso tivesse que deixar de ser quem sou hoje.
Pergunta fundamental: Quantas pranchas você tem? Quarenta e duas em casa, seis na Califórnia, oito no Havaí. Seriam mais se certas pessoas me devolvessem as que levaram emprestadas [risos].
O que sua mulher acha das 42 em casa? Temos uma garagem lotada de pranchas e ela diz: “Ok, esse é o quarto dele”. Ela só gosta de uma prancha: uma Allan Byrne, com seis canaletas, 8’6, colorida com uma linda resina azul. Deve ter uns oito ou dez anos. Está pendurada na parede da sala. A única prancha que ela gosta! Tive que pendurar.
Qual sua onda dos sonhos, a que mais gosta? Gosto muito de Sunset Beach. Também penso em Grajagan, na Indonésia, mesmo não tendo voltado lá em muitos anos. E algumas no Taiti.
Que onda o assusta? Geralmente, a que eu não surfei. Não sou dos mais fáceis de intimidar. Mas uma onda pesada, que ainda não tenha surfado, talvez possa dar medo.
Sua editora tem planos de publicar seu livro no Brasil? Sim, estamos pensando em traduzir para o português ou talvez fazer a versão on-line em inglês. Eu adoraria compartilhar com os brasileiros. Tem muito do nosso sangue nesse livro.
"Gabriel Medina é um dos grandes candidatos ao título de número um do mundo. O que me preocupa sobre os competidores brasileiros é que, olhando para trás, me parece que eles acabam esquecidos no próprio país"
“Era assustador” Trechos de TC (traduzidos livremente pela Trip), em que Tom Carroll fala em primeira pessoa sobre a incursão no mundo das drogas “Houve um tempo, em 2001, em que eu comecei a sentir novamente que tinha um problema sério com drogas. Eu não usava todos os dias. Mas estava usando praticamente todo fim de semana. Me sentia um lixo na segunda e na terça, depois dava a volta por cima e, no fim de semana, já estava na fissura de novo. Era muito difícil focar em qualquer coisa, eu ficava bem e mal muito rápido, um ioiô de emoções. Tenho certeza de que isso estava transbordando para as minhas relações. Mas eu negava tudo para mim mesmo, apenas para sobreviver.” “Eu odiava a sensação do ecstasy e a rebordosa depois. Era muito deprimente. Eu tentava encontrar um bom fornecedor, mas era muito difícil. E muito perigoso. Muitos comprimidos de ‘e’ vinham misturados a um coquetel de outras coisas – heroína, por exemplo. Virou uma experiência perversa, mentalmente arriscada. E eu estava por um fio. ‘Vou largar’, pensava. ‘Não vou me envolver com isso.’ Meu traficante não usava ‘e’. Ele apenas colocava um pouco de anfetamina na água e bebia. Então um dia eu disse: “Me dá um pouco disso”. Eu achava que não curtiria speed nem nada do tipo. Mas na verdade foi um combo perfeito para minha vida inquieta. Aguçava minha mente e me mantinha ativo. Parecia que aumentava minha capacidade de lidar com a realidade. Não demorou para eu ficar totalmente viciado” “Minha percepção era a de que eu não tinha mais energia. Minha percepção era de que eu precisava ser capaz de fazer cada vez mais. Pensava: ‘Como vou continuar com tudo isso?’ Demanda muita energia manter uma família unida. E a anfetamina é perfeita. É como uma xícara de café estendida. Afia sua concentração como cafeína. E essa descoberta parece ter combinado com a minha patologia melhor do que qualquer outra coisa. Eu consegui lidar com as anfetaminas por um tempo sem muito estrago.” “Eu me tornei mais e mais dissimulado, e me sentia melhor dessa forma. Eu poderia usar regularmente, mas não estava usando muito. Era um usuário funcional. Era o tipo de droga que eu não podia usar em quantidade muito grande. No entanto, eu estava numa espiral descendente, indo cada vez mais fundo. E, algumas vezes, você acaba querendo injetar, porque os efeitos começam a ficar mais fracos e você tem que usar mais.” “... Eu disse a eles: ‘Olha, estou fora do ecstasy. Tô pegando leve, me sentindo bem’. Um deles disse: ‘Tenho um bagulho muito, muito bom. Talvez você queira experimentar’. E porque não há distância entre meu pensamento e minha ação, tão logo eu tive aquela sensação, eu não poderia parar. Sem perceber, eu já estava experimentando metanfetamina. E a sensação que eu tive era muito mais pura. No início era um estado mental muito claro e cristalino. Nenhuma confusão. Um estado de concentração muito forte. Respostas certeiras para tudo. Ações eficientes, concentradas. Respostas imediatas do corpo. Sentidos afiados. Não é um barato que te deixa fora de controle, mas um barato de conseguir sentir tudo. O mundo em volta se torna mais nítido. Então imediatamente eu pensava: “Este é o lugar onde eu quero estar”. Eu não ficava apenas 10 minutos, 20 minutos ou 1 ou 2 horas – eram 10 horas no limite. Eu comecei a tomar oralmente. Tomava um pouco, pensando: ‘Vou tomar só isso’. Mas como a droga era muito traiçoeira, por se encaixar tão perfeitamente em minha patologia, eu já era. Eu já estava perdido. Estava tudo em minha natureza e o que foi desenvolvido ao longo dos anos – bum! – disparou um vício muito forte.” “No início aquilo parecia me ajudar. Parecia me apoiar em tudo. Eu estava presente para as pessoas, fazia o que tinha que ser feito, estava comprometido. Mas então você precisa daquilo para fazer as coisas, e então aquilo desaparece e você é deixado com você mesmo. Era assustador. Realmente assustador. Um outro nível de medo, que você não pode expressar a ninguém. Então comecei a estudar a substância que eu estava tomando, comecei a ler as histórias de horror e a ver tudo aquilo acontecendo comigo. Assustador. Mas continuei usando, porque tinha estabelecido uma obsessão compulsiva pela droga. Quando não havia a droga por perto, talvez um oitavo de mim conseguia pensar sobre o que estava na minha frente, enquanto o restante era consumido pensando: ‘Como vou conseguir? Tenho que pegar o telefone...’.” “Eu lia mais sobre a metanfetamina e pensava: ‘Ah, é exatamente o que está acontecendo comigo’. O que eu estava lendo me apavorava. Pensei: ‘Não posso continuar fazendo isso’. Mas não conseguia parar.” “Eu estava prestes a perder minha sanidade mental. Prestes a perder a minha família, prestes a perder a minha casa. Meu emprego, minha carreira, quem eu era. Eu ainda não tinha perdido tudo, mas estava indo ladeira abaixo, muito rápido. Eu sabia que precisava de ajuda. Ajuda em grupo. Eu precisava de pessoas ao meu redor. Mas também estava superapavorado com isso.” |