Depois de ajudar a desenvolver a paracanoagem, modalidade em que foi tetracampeão mundial, Fernando Fernandes se reinventa no kitesurf
"Se eu não posso andar, vou voar.” Quase dez anos após essa frase, Fernando Fernandes, 37 anos – paraplégico desde 2009 por conta de um acidente de carro – voou, literalmente, ao mergulhar no kitesurf, sua nova paixão. “O kite me despertou uma sensação diferente, de poder, de força, que poucas vezes senti na vida. Quando percebi que podia voar, senti como se tivesse ganhado um superpoder”, conta Fernando. O encontro com o novo esporte é recente, decisão tomada no início do ano, e fez com que ele precisasse praticamente abandonar a paracanoagem, modalidade pela qual conquistou nada menos que quatro mundiais, três pan-americanos, quatro sul-americanos e cinco brasileiros.
Outros fatores motivaram Fernando para essa virada, a começar pela própria natureza do kite: “Sinto que a minha capacidade fica de igual para igual. No caiaque, levo desvantagem porque tenho que focar muito no braço. Pra ficar no topo, tive que me manter no auge do preparo físico por oito anos, sem descansar um dia sequer. No kite, quanto mais técnica eu tiver, mais capacidade vou ganhar”, explica ele, que atribui a mudança de esporte também à decepção com o sistema de competições da paracanogaem, formato que ele acredita ter sido responsável por ter ficado de fora dos Jogos Olímpicos de 2016. “Criei a modalidade no Brasil e fui um dos maiores divulgadores no mundo. Ainda assim, fui vítima da má administração dos regulamentos, que permitem que alguém com mais mobilidade leve vantagem”, explica. “O mundo competitivo às vezes é sujo e não quero viver nessa sujeira. Prefiro viver aqui nesse style.”
O Brasil tem hoje, principalmente nos litorais do Ceará e Piauí, alguns dos picos mais paradisíacos de kitesurf, que atraem gente do mundo todo durante a temporada de ventos fortes, entre julho e dezembro. “É uma conexão incrível com a natureza. São lugares preservados, alguns inóspitos.” Trip acompanhou parte de uma viagem de uma semana em que o paratleta percorreu o litoral do Ceará, em outubro, passando por alguns oásis, como Lagoa do Jegue, Ilha do Guajiru, Lagoa do Cauípe, Praia do Preá e Praia do Cumbuco, a 35 quilômetros de Fortaleza, que é referência para os praticantes de kite e já recebeu etapas do mundial.
Calmaria e vendaval
Quando chegamos à Lagoa do Cauípe, próxima a Cumbuco, num domingo de ventos não tão bons para a prática, o paratleta não via a hora de velejar. Os ventos muito fortes, que normalmente podem intimidar alguns praticantes da modalidade, são fundamentais para ajudar o paratleta a levantar o corpo, a cadeira e a prancha acima da água. Ele conta que, em outra condição climática, sente mais dificuldade para manejar a pipa. “Enquanto algumas pessoas ficam com medo do vento, quero que ele seja mais forte. O risco é maior, mas o tesão é infinito e meu superpoder triplica.”
Se há mais perigo, é certo que em nenhum momento ele é enfrentado de maneira inconsequente. As façanhas de Fernando são possíveis porque são testadas com cuidado e contam com a parceria de Gustavo Foester, conhecido como Gugu, sempre atento a qualquer sinal de perigo. Foi o kitesurfista profissional que apresentou o esporte a Fernando em 2017 e, desde então, os dois têm trabalhado na adaptação dos equipamentos e dos treinos. “Essa cadeirinha que ele adaptou do wakeboard é boa pra um tipo de local e não é pra outro. A prancha também quebra direto, porque não foi feita para receber a cadeira”, explica Gugu, que completa: “Tivemos que ajustar totalmente o treino, do zero, porque não temos referências”.
Assim, de maneira um tanto empírica, Fernando está abrindo o caminho para o kitesurf adaptado no Brasil, criando uma prática diferente das que encontrou em outros países. “Existem três velejadores cadeirantes no mundo, mas que já praticavam kite antes de sofrerem acidente, são casos diferentes do meu. Sinto, porém, que eles têm certo receio de voar porque a pipa é ligada à cadeira, não ao trapézio, que fica preso na cintura, como é o padrão [e o caso de Fernando]. Isso reduz a mobilidade”, argumenta.
Embora ainda incipiente e com pouquíssimos praticantes, se chegar ao nível mundial, a vertente adaptada pode ter oportunidade olímpica, já que o kitesurf está programado para entrar nos Jogos da França em 2024. Mas ainda é cedo para pensar nisso. A questão, por enquanto, é humana.
Paralelamente à prática, Fernando segue militando com o esporte para que deficiência não seja sinônimo de incapacidade. “Não quero mudar muito a prática, quero ter proximidade com os atletas sem deficiência. Um negócio que me incomoda na relação com a deficiência é que as pessoas falam ‘nossa, ele consegue saltar’, em tom de surpresa, ou ‘toma cuidado com a sua coluna’. Minha coluna é mais difícil de quebrar do que a de muita gente!”, brinca, mas se lembra das lesões que teve desde que iniciou sua trajetória no kite.
O vício em superar limites tem um custo físico. Desde fevereiro, Fernando já se recuperou de uma fratura na costela e passou por uma cirurgia para remoção de uma hérnia na virilha, agravada pela prática. “Vou ter que refazer a funilaria pra começar ano que vem zerado”, diz. “Tenho necessidade de criar um mundo novo para as pessoas que estão sentadas. O preço é uma costela quebrada aqui, uma lesão ali, faz parte.”
Antes ou depois do acidente, o paulistano segue uma trajetória fluida, levado pelos ventos. Da passagem pelo Big Brother Brasil, em 2002, procura se esquivar (“Já passou”, diz), diferentemente dos tempos como modelo de grifes como a italiana Dolce&Gabbana. Atualmente, segue em evidência como apresentador do programa Além dos limites, no Canal Off, e do quadro “Sobre rodas”, no Esporte espetacular, da Rede Globo, ambos sobre esportes radicais adaptados (de bike a esqui) e com temporadas confirmadas para 2019.
“Me sinto nesse papel de abrir portas. Sou bonito, luto pela minha beleza e ela me favorece. Esse lance de ser deficiente e ser visto como coitadinho, como o corpo estranho, me incomoda”, desabafa. O atleta está solteiro desde 2016, quando terminou o namoro de quatro anos com a austríaca Viktoria Schwarz, campeã mundial de canoagem. O sexo depois do acidente foi retomado por meio de uma técnica bem simples: tentativa e erro. “Eu tô testando sempre, todo tipo de posição. É o kama sutra adaptado [risos]. Sempre vai ser uma descoberta, mas hoje em dia minha relação com sexo está muito mais confortável, digamos.”
Começando por baixo
A chegada ao universo do kitesurf é, para além da parte física e esportiva, uma imersão. Fernando faz questão de conversar com os atletas locais, em sinal de respeito, com um jeito que há tempos o distancia da fama de brigão que ganhou quando participou do reality show da Globo, 16 anos atrás. No lugar dessa personalidade intempestiva, existe agora um cara cauteloso, acostumado a recomeçar. “Abri mão da canoagem pra começar do zero em um esporte novo. Tem que ter humildade pra sair de um lugar onde você é rei, tem notoriedade e respeito, pra virar um iniciante, começar lá de baixo.”
Além de seguir visitando frequentemente Cumbuco, os próximos ventos devem levá-lo ao Havaí. Sua ideia é passar temporadas nos dois lugares, abandonando sua base, que atualmente é Salvador (BA). Para colocar o novo voo em prática, Fernando tem pensado sobre os caminhos para “viver do vento” e, assim, tem transformado as próprias viagens em fonte de renda, pegando carona na onda de criar conteúdos para marcas. “Ao mesmo tempo que é um prazer, esse lifestyle pode também virar um negócio.” O desafio principal, porém, é seguir aprimorando as técnicas e equipamentos para controlar a natureza e também lidar bem ao ser controlado por ela, numa relação de equilíbrio.
Em cima da prancha, Fernando é capaz de voar, de extrapolar os limites do próprio corpo; no dia a dia, o cara antes metódico, que acordava às 5 horas da manhã para remar todos os dias, agora precisa saber, eventualmente, esperar. Afinal, o treinamento depende das condições do vento. Nenhum problema. Na sua forma de ver a vida, o espaço que mais frequenta é o da aceitação e do agradecimento, sem melodrama. É como ele mesmo costuma dizer: “Superação foi há nove anos. Agora, é só vida”.
Créditos
Imagem principal: Daniel Sigaki