Somos todos caretas

O sonho não acabou, mas ele foi banalizado com sonhos de consumo

O sonho não acabou, mas ele foi banalizado com sonhos de consumo pagos em até 12 vezes no cartão, compartilhados com os amigos e conhecidos via Facebook e delimitados por regras já estabelecidas

Ao contrário do que dizia aquela canção de Gilberto Gil, eu não acho que o sonho acabou. Mas que o sonho foi meio banalizado, isso foi. Ainda podemos sonhar, mas temos que fazer isso sem vandalismo e dentro de regras e parâmetros claros. Sonhando sonhos de marca e pagando por ele em até 12 vezes no cartão. Podemos sonhar do mesmo jeito que podemos andar de bicicleta em São Paulo aos domingos: ordeiros, uniformizados, dentro dos horários e das pistas delimitadas para tal atividade pelas autoridades constituídas. Até na arte o sonho foi banalizado, começando no dia em que a Pop Art, que é a irmã chique da cultura de massas, começou a transformar tudo em sopa Campbell’s (incluindo o rosto sonhador de Che Guevara e o inflamado discurso “Eu tenho um sonho” de Martin Luther King), e piorando no dia em que “I shot the Sheriff”, de Bob Marley, virou música ambiente e começou a tocar nos supermercados.

O sonho é uma conquista das sociedades modernas e democráticas e deriva da possibilidade legítima de se almejar coisas que não se tem, sejam elas materiais ou da alma. Em culturas nas quais os destinos já estão traçados por imposições de família, casta, classe, cor de pele, religião etc., resta muito pouco espaço para que se possa sonhar com algo. O mundo no qual se permitiu às pessoas sonhar foi construído com não pouco sangue e esforço a partir do Renascimento (Iluminismo, revoluções burguesas, sociais-democracias, invenções como a de Gutenberg etc.).

Embora imperfeito, este mundo é infinitamente melhor do que o que havia antes. Às vezes nos esquecemos de que vivemos numa das únicas épocas, na longa história da humanidade, na qual o sonho não só é possível como até mesmo encorajado: hoje em dia afirma-se que você tem não apenas o direito de sonhar, mas a obrigação de fazê-lo.

Tradição e mudança

O problema é que toda moeda tem dois lados, e quando as pessoas achavam que se tornavam cidadãs, elas estavam, também e principalmente, virando consumidoras. O liberalismo deu nó em pingo d’água e, enquanto com uma mão defendia valores supostamente universais, como aqueles direitos todos (à vida, à educação, à felicidade etc.), com a outra transformava tudo segundo as leis do mercado. Hoje, mais do que em qualquer outro lugar ou época, é o dinheiro que dá as cartas. Terminei de ler há poucos dias o romance Sanshirô, de Natsume Soseki. Escrito e ambientado em 1908, o livro conta a história de um estudante universitário do interior do Japão durante seu primeiro ano em Tóquio. O pano de fundo é o período em que o Japão se modernizava (se ocidentalizava), com as pessoas tentando se equilibrar entre tradição e mudança. Num certo ponto, um personagem fala, a respeito de outro, que este é “como os americanos, daquele jeito tão brutalmente direto a respeito de dinheiro: a coisa em si é o que conta”.

O tom do livro não é pessimista, e nem Soseki era conservador ou antiocidental (muito pelo contrário). Mas o que eu achei curioso foi que um comentário sarcástico a respeito dos americanos seria, pouco mais de cem anos depois, uma unanimidade planetária, válida no Japão, no Brasil e em qualquer outro lugar.

O que está difícil não é sonhar. É sonhar um sonho que não seja careta. É não sonhar com algo apenas porque a Visa ou a Mastercard querem que nós sonhemos. É acreditar que o sonho possa ser sonhado fora de um gadget conectado e sem que todos os nossos amigos e conhecidos acompanhem nossos sonhos, via Twitter e Facebook, curtindo e comentando. O que está complicado, enfim, é sonhar com uma viagem pessoal, e não com uma que tenha sido planejada pela CVC para o nosso perfil socioeconômico e cultural. Sim, o sonho se banalizou, e quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou. Eu, pelo menos, posso dizer que dormi.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br
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