Somos muito piores

No passado havia uma disputa mais justa entre caça e caçador, por André Caramuru Aubert

No tempo de nossos antepassados remotos havia uma disputa mais justa entre caça e caçador, sendo esses papéis invertidos com frequência

“E Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e tudo o que vive e se move sobre a terra’.” (Gênesis, 1:27) Você até pode, como eu, não acreditar que essas sejam as palavras de Deus. O que você não pode negar é que nós, ocidentais, obedecemos a essas ordens direitinho. Diferentemente de muitos outros povos, nós sempre partimos dos pressupostos de que não somos parte da natureza, estamos acima dela e de que ela existe unicamente para servir aos nossos propósitos.

A verdade é que, por 99,9% do tempo desde o início dos seres humanos, vivemos como caçadores coletores, num regime que, se não era de perfeita comunhão com a natureza, foi o mais próximo disso que conseguimos. Vivemos assim por uns 3 milhões de anos, até que, há mais ou menos 10 mil anos, começamos a desejar a casa própria. Passamos a plantar e a domesticar animais: primeiro, parece, foram cachorros; depois, há uns 8 mil anos, ovelhas, cabras e porcos; há 6 mil, as vacas; há 4 mil, os cavalos e burros; 500 anos depois, galinhas e lhamas; e, por fim, há 2.500 anos, camelos. Essa turma toda até que não se deu mal: como nós, foram fecundos e se multiplicaram, embora às vezes terminem seus dias numa panela. Mas têm tido vida bem pior os outros bichos, os que não quisemos ou que não se deixaram domesticar. Das cerca de 5.600 espécies de mamíferos no planeta, mais de 1.100 estão seriamente ameaçadas e cerca de 800, extintas. Nos últimos anos, foram extirpados do planeta, entre outros, o golfinho do Yang-tsé e o cabrito dos Pirineus. Acrescente-se à lista pássaros, répteis, anfíbios, moluscos, peixes etc., e os números ficam ainda mais medonhos. E, sim, se você gosta de sushi, aproveite bem o de atum, enquanto ele existe.

7 bilhões de pessoas = asteroide
Ainda hoje obedecendo sem hesitar às ordens do Gênesis, temos em nós arraigada a ideia de que precisamos encher a Terra de gente, sem levarmos em conta (de novo, ao contrário de outros povos) se o planeta terá condições de sustentar indefinidamente nosso gosto por famílias grandes. Estima-se que a população mundial, quando éramos caçadores coletores, tenha permanecido, por milênios, na casa dos 4 milhões de indivíduos. Quando passamos a domesticar animais e a plantar, ela cresceu, dobrando a cada mil anos, atingindo os 50 milhões lá pelo ano 1000 a.C. De lá para cá não parou mais de aumentar, chegando aos 600 milhões em 1700, batendo a marca do primeiro bilhão no começo do século 19 e explodindo dali em diante, até chegar aos atuais 7 bilhões. É claro que isso não seria possível sem que causássemos um impacto digno de um asteroide-de-matar-dinossauro no planeta e em todos os seus habitantes não humanos.

Comer outros animais não me parece o maior problema. Eu mesmo, admito, não consigo passar um único dia sem ingerir proteína animal. Esse lado carnívoro, que meus dentes caninos não me deixam esquecer, nunca me abandonou, desde os tempos em que, criança, eu roubava e comia bifes crus, antes do almoço, na cozinha de casa. Mas no tempo de nossos antepassados remotos havia uma disputa mais justa entre caça e caçador, sendo esses papéis invertidos com frequência. A encrenca sem solução, hoje, é ter gente demais para alimentar, e precisarmos criar animais para o abate, em condições de extrema crueldade, ou caçá-los em escala industrial, como fazem os pescadores japoneses com baleias, atuns e golfinhos. Aí, nesse ponto, quase concordo com o Gênesis e penso que não somos mesmo iguais aos animais: somos é muito piores.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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