Nosso roqueiro calejado descobriu aquela boa e velha atitude rock?n?roll em senhores que não cantam, não gritam nem quebram guitarras
Por Cadão Volpato*
No meu tempo de Libelu1, comício bom era parecido com concerto de rock: podia levar as pessoas à loucura. Passados tantos anos, ficou cada vez mais difícil encontrar de novo aquele tipo de catarse que nos fazia cerrar os punhos e gritar palavras de ordem com toda a força dos pulmões ("Abaixo a ditadura!", num contexto mais amplo, ou "Aqui estão os soldados de Leon!", para ficar no terreno doméstico dos trotskistas). Eu achava que não se faziam mais comícios como antigamente.
Pois todo dinossauro vermelho recupera, um dia, as lágrimas do passado. Aconteceu agora, em Nova York. Eu e minha mulher abrimos a Time Out e lá estava: haveria uma leitura pública e gratuita de um time dos sonhos de escritores contra a tortura (a tortura legalizada pelos americanos em Guantânamo e em outras bases americanas pelo mundo, mas também qualquer outro tipo de tortura). Não perderíamos isso por nada. Onde você encontraria juntos Salman Rushdie, Paul Auster, Dave Eggers e Edward Albee? Na Flip? Na Companhia das Letras? Então, lá fomos nós ao Cooper Union, uma instituição de ensino que fica num prédio vetusto do East Village, onde a tortura seria surrada pelas palavras. O nome do evento: State of Emergency – an Evening of Readings Against Torture, Arbitrary Detention, and Extraordinary Rendition. Quem imaginou a coisa foi o Pen American Center2, uma organização que defende escritores e jornalistas presos ou perseguidos por seu trabalho. O presidente é Salman Rushdie.
Uma longa fila nos aguardava quando chegamos, uma hora antes. E tinha de tudo: de universitários e lésbicas a velhos hippies de rabo-de-cavalo branco. Muitos jovens. A atriz Cloé Sevigny passou falando no celular. Panfletos anti-Bush rolavam solto, levados às vezes por velhos militantes de esquerda, muito persuasivos, às vezes pelo vento frio do outono. A fila só fazia aumentar, mesmo na noite gelada.
Pois agüentamos firme, eu e minha mulher. Quando, enfim, em perfeita ordem, entramos no recinto, e percebemos o burbu-rinho oceânico da massa que chegava atrás de nós, ficou claro: o perfume do protesto estava no ar. Era como estar na USP, nas assembléias da história.
Em seguida, timidamente, entraram os palestrantes, puxados por Rushdie. As palmas estouraram. O primeiro a ler foi Edward Albee, autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?. Ele contou a história do fuzilamento de Federico Garcia Lorca, durante a Guerra Civil Espanhola. De como o poeta levou um tiro no ânus. Aliás, Albee não leu, falou de improviso. E foi o melhor texto da noite. Nossas mãos ficaram doendo de tanto aplaudir aquele senhor de bigode, blusão de couro, camisa vermelha e gravata, pura dignidade.
Paul Auster e Dave Eggers, os mais pop, leram textos de outros autores. Todos fizeram isso, menos Albee. Então, pela boca dos outros, ouvimos Eduardo Galeano, velho mito da esquerda do meu tempo de estudante. Ou José Saramago, um cara de maus bofes que acredita que a esquerda acabou mesmo, conforme li nos jornais da semana passada.
Era como estar em casa, no meu campus, e nunca bati palmas tão ardentes na minha vida, nem no primeiro concerto do Kraftwerk em São Paulo, nem para Siouxie and the Banshees, nos anos 80. Ou seja, foi mais catártico que o rock’n’roll. Com eles, descobri que ainda seria capaz de gravar a canivete no violão, como fez o velho trovador de esquerda Woody Guthrie: "Esta máquina mata fascistas".
Eu e minha mulher, graças a Deus.
(1) Liberdade e Luta, uma tendência trotskista dos anos 70
(2) Você pode ouvir todos os discursos dos escritores no site do Pen American Center: www.pen.org
*Cadão Volpato é jornalista, escritor e roqueiro ocasional