Baseado em fatos irreais

por Nathalia Zaccaro

Em Pico da neblina, nova série da HBO, o diretor Quico Meirelles imagina um Brasil onde a maconha foi legalizada

Em 2015, quando a equipe da série Pico da neblina trabalhava para desenrolar o roteiro que imagina um Brasil onde a maconha foi legalizada, a ideia de que a discussão sobre a Cannabis teria avançado no Legislativo brasileiro era bem razoável. “Na época, eu tive até medo que a legalização já estivesse avançando quando a série fosse lançada e o roteiro perdesse interesse. Mas, olhando para o cenário hoje, isso parece impossível”, conta Quico Meirelles, diretor-geral da produção, que estreia neste domingo, dia 4 de agosto, na HBO.

O protagonista de Pico da neblina é Biriba, vivido por Luis Navarro, um traficante que enxerga na legalização a possibilidade de deixar para trás a vida do crime, mas, logo no primeiro episódio, percebe que as fronteiras entre legal e ilegal não são tão nítidas quanto parecem. “Breaking bad é a história de um cara que vai entrando cada vez mais fundo no mundo da ilegalidade. A nossa história é um pouco oposta, do cara que estava no mundo do crime e resolve sair do ilegal", conta o diretor.

Além de Navarro, o elenco conta também com Daniel Furlan (conhecido por seu papel no programa  Choque de cultura), Leilah Moreno e Dexter, que estreia como ator na pele do traficante CD. “A série é muito paulistana e vê São Paulo de um jeito que não costuma ser muito retratado, a cidade da classe média baixa, a periferia, mas que não é favela. Queríamos que os atores entendessem esse universo, conhecessem, tivessem propriedade sobre o que eles estavam falando. Esse universo tem uma prosódia própria, um jeito de falar, um jeito de se comunicar”, conta Quico. 

Dois dos dez episódios da séries foram dirigidos por Fernando Meirelles, pai de Quico, que ajudou também na concepção e linguagem do trabalho. "60% da equipe era negra ou mestiça, tivemos uma consultoria de roteiro, já que ele foi escrito por ‘playboys’. E isso faz toda a diferença”, conta Fernando. 

Trocamos uma ideia com Quico sobre a estreia, se liga:

Trip. Quando surgiu o projeto?
Quico Meirelles. A ideia surgiu lá em 2012, quando passou a lei da TV paga no Brasil e sabíamos que os canais iriam atrás das produtoras independentes pedindo conteúdo, ideias de séries. O Cauê Laratta, amigo da faculdade e depois roteirista da série, criou essa premissa sobre um cara que é traficante de maconha quando ela é legalizada no Brasil. Apresentei essa ideia na O2, todo mundo achou interessante e um time incrível de roteiristas desenvolveu a história toda.

A série é sobre a legalização da maconha? Ou o tema fica mais como pano de fundo? A gente não mostra muito o debate que teria ocorrido na sociedade até a legalização, mas fazemos as conjecturas de o que poderia acontecer com todas as pessoas envolvidas nesse universo: o usuário, o traficante, os novos jogadores desse mercado, as grandes empresas, os fazendeiros. Então, a gente pensa sobre a questão das drogas no Brasil, mas, ao mesmo tempo, discutimos bastante o racismo estrutural.

Para o elenco, vocês optaram por rostos não tão conhecidos. Como foi esse processo de seleção? Isso trouxe frescor. A série é muito paulistana e a gente vê São Paulo de um jeito que não costuma ser muito retratado, a cidade da classe média baixa, a periferia, mas que não é favela. Queríamos que os atores entendessem esse universo, conhecessem, tivessem propriedade sobre o que eles estavam falando. Tem uma prosódia própria, um jeito de falar, um jeito de se comunicar. Abrimos um processo de escolha de elenco pouco ortodoxo, postamos no site da produtora um vídeo convocando interessados, recebemos uns 2.600 vídeos e passamos um mês todo selecionando. Nesse processo achamos nossos protagonistas.

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E tem o rapper Dexter também, estreando como ator. De onde veio essa ideia?
A gente estava com um pouco de dificuldade para encontrar um ator para interpretar o coordenador do tráfico informal. E aí o Luis Carone, que é um dos diretores, pensou no Dexter. Apesar de na primeira leitura do roteiro termos sentindo que ele ainda tinha certa dificuldade com a câmera, Dexter tem uma verdade muito legal, uma autenticidade, um jeito de falar, uma propriedade com aquele universo que a gente nunca ia conseguir encontrar em um ator. Ele trouxe a expertise da vida dele para série, enriquece muito o todo. 

Onde vocês filmaram? Rodamos algumas coisas em Heliópolis, também ali perto da Lapa, onde tem um miolinho de ruas meio tortuosas, estreitinhas, umas casinhas baixas. Teve muita coisa na Mooca, no Brás. Rodamos realmente pela cidade inteira. 

Por que optaram por fugir do contexto da favela e priorizar bairros de periferia? Eu acho que desde o sucesso de Cidade de Deus isso virou uma muleta, meio "vamos fazer isso, dá certo". Esse embate entre policiais e bandidos já foi muito retratado, é um clássico. Virou uma repetição muito recorrente no cinema e na teledramaturgia. Já vi um monte, já cansamos de ver, já entendemos. Então, eu queria falar um pouco desse outro estrato social que não é muito retratado, não se fala muito, dessa classe média baixa muito particular do Brasil e que não costuma ter suas histórias contadas.

Vocês fazem um paralelo com a série Breaking bad, apelidando o Pico da neblina de “breaking good”. Por quê? Breaking bad é a história de um cara que vai entrando cada vez mais fundo no mundo da ilegalidade. A nossa é a história um pouco oposta, do cara que estava no mundo do crime e resolve sair do ilegal. Mas ele vai ver que, no Brasil, essa linha não é tão clara. Essa fronteira é bem mais cinzenta e complexa. 

Vários filmes e séries estão apostando em distopias, como a de vocês. Por que você acha que isso está acontecendo? Na verdade, não sei se eu diria que o Pico é uma distopia. Em uma distopia, você propõe um futuro próximo, em que há alguma coisa muito diferente. Tem sempre aquele começo do filme em que você precisa tentar entender quais são as regras do jogo. Em Pico, o mundo é totalmente igual, exatamente como a São Paulo de 2019, mas a maconha é legalizada. De fato, esses princípios de utopia estão surgindo, é uma coincidência interessante.

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Vocês já pensam em próximas temporadas? Quando a gente propõe uma série, sempre pensa nisso. Mas aí é com o canal, com a audiência, se a série vai dar certo ou não. Eu estou achando a série muito legal e quero continuar fazendo, mas isso sou eu sonhando. 

Seu pai, Fernando Meirelles, dirigiu alguns episódios. Como é trabalhar com ele? Na série, são quatro diretores. Eu sou diretor-geral e assino quatro episódios. O Luis Carone fez três, meu pai fez dois e o Rodrigo Pesavento fez um. Quando é um trabalho longo, dividimos entre mais pessoas, porque é muita coisa. A gente se junta para tocar o processo de concepção da série, desenvolvimento da linguagem, da dramaturgia, fotografia e, a partir daí, cada um foi fazendo seus episódios, mas dentro dessas mesmas referências. Trabalhar com o meu pai é sempre um grande prazer, a gente é muito amigo, conversamos muito sobre cinema. Ele tem muita experiência, anos de estrada e propõe sempre coisas muito interessantes. Ajuda muito. 

Seguir a mesma profissão que ele foi uma questão? Eu não sou um iconoclasta de querer fazer algo radicalmente diferente e nem quero tentar fazer algo parecido. Eu cresci vendo os sets de filmagens em que ele estava dirigindo, vendo o jeito como ele lida com equipe, com atores, com histórias. E, quase sem querer, isso está no meu jeito de trabalhar. Mas isso não quer dizer que o resultado vai ser parecido. O jeito como a gente encara a profissão é que é muito parecido. Ele filma rápido, eu também. Nós dois simplificamos onde dá para gastar tempo e onde vale a pena.

Créditos

Imagem principal: Divulgação

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