Não era uma segunda-feira comum
O jornalista Caio Ferretti conta como tem sido viver em Santiago, no Chile, em meio a onda de protestos e violência que tomou a cidade
São 8:30 da manhã de segunda-feira em Santiago do Chile. A essa hora, em um dia normal, as ruas deveriam estar tomadas por um intenso vaivém de milhares de pessoas caminhando até as estações do metrô, nos pontos de ônibus, deixando os filhos nas escolas ou paradas no trânsito a caminho do trabalho. Um caos típico de qualquer grande metrópole. Mas esta não é uma segunda-feira normal. Os últimos três dias não foram nada normais por aqui.
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Enquanto pedalo minha bicicleta no trajeto de 4 km que separa minha casa do meu trabalho, sinto como se tivesse saído por engano em um feriado. As ruas estão desertas. Quase ninguém se arriscou a sair de casa. Muitas das pessoas que saíram da cama com a esperança de ter um dia normal, agora estão nas enormes filas formadas em frente das escassas farmácias e supermercados, que funcionam parcialmente.
Quase tudo está fechado desde sábado: lojas, shoppings, bares, linhas de metrô, escolas, universidades… E alguns números justificam esse fechamento quase total. Mais de 80 estações do metrô foram destruídas. Cerca de 120 supermercados da rede Walmart — chamados de Líder no Chile — foram saqueados em todo país e quase uma dezena foi totalmente queimada, levando à morte algumas pessoas que não tiveram tempo de sair do local.
Nesta segunda-feira nada comum, os mercados, além de quase todos fechados, têm grandes grupos de policiais e de soldados do exército estacionados em suas portas, numa tentativa de impedir que os números da violência continuem crescendo. Nos grupos de WhatsApp de amigos e familiares que participo por aqui, foi comum receber mensagens de pessoas que haviam encontrado algo aberto para comprar comida ou remédios e decidiram encarar as longas filas. Perguntavam para os demais se precisavam de algo urgente e sempre recebiam encomendas por parte dos outros integrantes do grupo.
Ecos do passado
É difícil contar em primeira pessoa como está a situação nas ruas da cidade durante a noite. A razão é simples: estou proibido de sair à noite. Se sair, posso ser preso. Sem conversa. No sábado foi decretado pela primeira vez em mais de 30 anos um toque de recolher em Santiago. A última vez que isso aconteceu foi durante a ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, neste sábado de 2019, por decreto, ficamos todos impedidos de colocar o pé na rua entre 22 horas e 7 horas da manhã. Nessa noite, curiosamente, eu estava em um evento longe de casa quando o anúncio foi feito na televisão. Tive que ficar onde estava, durante toda a madrugada, esperando pacientemente que o relógio finalmente marcasse 7 horas para eu poder encarar o caminho de volta para casa.
O toque de recolher se repetiu na noite de domingo, com outros horários. Dessa vez, ficamos proibidos de sair das 19 horas até às 6 horas. Devo dizer, é bastante estranha essa sensação de certa privação de liberdade, mesmo que seja com hora marcada para terminar. Gera-se uma angústia misturada com ansiedade saber que, aconteça o que aconteça, você simplesmente não poderá sair dos limites dos muros em que estiver.
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O silêncio de uma cidade durante um toque de recolher é impactante. Esse ruído constante de carros e pessoas que existe nos grandes centros urbanos, ao qual estamos tão acostumados que nem notamos, simplesmente desaparece. No caso de Santiago, na noite de domingo, o silêncio foi quebrado algumas vezes por sobrevoos rasantes de helicópteros, que faziam vibrar todas as janelas da casa em que vivo. Além disso, vez ou outra o barulho ficou por conta dos panelaços que tomam todos os bairros da cidade com alguma frequência.
Na televisão, a programação normal dos canais abertos foi abandonada totalmente nos últimos dias. As emissoras transmitem ao vivo e praticamente o tempo todo os variados casos de desordem que acontecem na cidade. Isso, claro, tem ajudado a aumentar a sensação de caos e insegurança nas pessoas. Filas de carros com mais de um quarteirão de extensão têm se formado nos postos de gasolina, em uma desesperada — e talvez desnecessária — tentativa de se sentir mais seguro com o tanque cheio.
Como a situação chegou a este ponto crítico?
Os protestos começaram na semana passada, de forma tímida, por causa de um aumento no preço da passagem do metrô. A medida foi anunciada no início do mês, mas a revolta popular começou a se manifestar muitos dias depois. Aqui, vale acrescentar um episódio que provavelmente passou despercebido pela imprensa brasileira. O preço do metrô de Santiago varia conforme o horário. Antes das 7 horas da manhã, por exemplo, o valor é mais baixo. Pouco depois que o aumento foi anunciado, quando a insatisfação das pessoas já dava os primeiros sinais, o Ministro da Economia chileno sugeriu que a população deveria começar a acordar mais cedo para evitar pagar a passagem mais cara. Foram as primeiras gotas de gasolina a serem despejadas no fogo que já estava aceso.
Similar ao que aconteceu no Brasil em 2013, o protesto contra o preço do metrô começou a ganhar corpo e reivindicações com o tempo, e agora não dá sinais de que vá perder força. Entraram na pauta os custos da saúde, da educação, as baixas aposentadorias... Precisaria de algumas páginas para explicar em detalhes o cenário político-econômico que levou o país a esse estopim. O aumento das passagens foi cancelado, mas já parece um pouco tarde para voltar atrás.
Isso nos traz de volta a essa tal segunda-feira nada normal. A rotina da cidade está paralisada. Durante o dia todo, foi incessante o barulho de helicópteros no céu da cidade. No final da tarde, saí de casa para dar uma volta pelo bairro e ver como estava a situação. Virei a primeira esquina e dei de cara com dois tanques de guerra estacionados em uma das principais avenidas da capital chilena. Continuei caminhando mais alguns poucos quarteirões e cheguei a outra avenida, totalmente interditada por manifestantes que rodeavam outros dois tanques de guerra. As últimas notícias falam em 20 mil militares na região de Santiago.
Já são 19 horas e, enquanto escrevo este texto, um novo toque de recolher foi decretado na cidade. É o terceiro consecutivo. Entre as 20 horas de hoje e às 6 horas de amanhã, ninguém poderá sair na rua. Terça-feira certamente não será um dia normal.
Créditos
Imagem principal: Caio Ferretti
Caio Ferretti é jornalista de São Paulo, trabalhou na reportagem da revista Trip entre 2007 e 2013, quando se mudou para Santiago, no Chile.