por Carlos Messias
Trip #274

Paula Picarelli confunde os limites entre ficção e realidade no livro A Seita, em que a atriz narra o lado obscuro de um culto que gira em torno de cerimônias de ayahuasca

Por oito anos, a atriz Paula Picarelli viveu uma história que misturava mitologia grega, esoterismo e diversas liturgias em uma mesma narrativa. Girava em torno de rituais relacionados ao consumo da ayahuasca, chá tomado para fins religiosos e terapêuticos há mais de 5 mil anos por tribos indígenas. A bebida, preparada a partir da mistura do cipó (jagube ou mariri) e arbusto (chacrona ou videira chagropanga), normalmente é associada a relatos de pessoas que encontram ali uma experiência de vida transformadora. Mas a protagonista encontrou uma jornada que envolveu manipulação e ameaça de morte.

Longe do que parece, não se trata de nenhum filme ou peça. Paula, 39 anos, viveu, de fato, essa história durante os oito anos que dedicou a um grupo que realizava rituais místicos a partir do tradicional chá – experiência que ela transforma em ficção no livro Seita – O dia em que entrei para um culto religioso.

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“Minha intenção foi chamar a atenção para as questões relacionadas a participar de uma seita, e não só para a minha experiência pessoal”, conta ela, que alega ter sofrido ameaças indiretas de morte. “No romance, há passagens nas quais eu sintetizo ideias minhas a respeito do tema e cenas totalmente fictícias que criei para dar mais dramaticidade à história”, explica a atriz, que é conhecida no teatro paulistano, tem novela da Globo no currículo e foi apresentadora do programa Entrelinhas, da TV Cultura

.Se são comuns os relatos de sensações como diluição do ego e conexão espiritual, no enredo criado por Paula, a ayahuasca também aparece como instrumento de manipulação ideológica e afetiva. A atriz conta que o líder do seu grupo a pressionava a tomar a bebida com cada vez mais frequência, chegando à média de três vezes por semana. “Sempre tentei ser muito certinha e obediente. Então, quando as pessoas pediam para a gente fazer as coisas sem pensar, me jogava de cabeça”, explica. “No livro, não estou contra a ayahuasca, mas contra a manipulação. Tive experiências muito fortes e reveladoras. Mas comecei a atribuir à seita tudo de bom que acontecia comigo, e não aos caminhos que percorri. E isso me impedia de questionar.” Sua saga contou com uma reviravolta que não era nem de longe desejada. Bom para ela teria sido ficar com o final óbvio.

Leia trecho do livro em que a autora descreve um ritual com ayahuasca:

Ali não existia timidez, não existia vergonha, eu não estava amarrada em meu corpo tenso. Eu me senti grande, quente, como se minha presença tomasse todo aquele espaço, e todos estávamos envolvidos por essa sensação boa, amorosa, dourada. De repente, eu amava aqueles desconhecidos, esquisitos, perdidos, alegres, tristes, abandonados, meus irmãos.

Fui até o quintal, olhei para o céu, abri meus braços, queria abraçar o céu inteiro. As nuvens eram anjos comemorando aquele momento. Ali eu podia fazer qualquer coisa, pular, gritar, chorar, uma liberdade maravilhosa.

Pensei em Deus, naquela imensidão. Naquele momento, eu sabia o que era o infinito. “O infinito existe”, pensei. “Eu sou o infinito.” Mas, estranho, também me vi muito pequena. Era um maravilhamento diante de uma coisa muito grande, que, por isso mesmo, também me esmagava.

O ritual todo, o “trabalho”, como era chamado, durou umas três horas. “Trabalho” é uma ótima palavra, porque você se revira, é colocado diante de si, é obrigado a olhar para si e a trabalhar mesmo. Eu sentia que não era possível mentir sob o efeito da ayahuasca. Se a pessoa tinha alguma questão mal resolvida com alguém ou consigo mesma, a bebida ampliava a sensação até que a situação estivesse resolvida. Ao final, foi servido um lanche simples, caseiro, de sopa de abóbora, pães, frutas. Esperamos o transe baixar para que as pessoas pudessem dirigir ou pegar uma condução de volta para casa.

Créditos

Imagem principal: Otávio Dantas/Arquivo pessoal

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