Em vez de ceder diante da sua doença incurável, Eduardo Hiroshi se jogou em algumas das ondas mais pesadas do Brasil. É lá, com sua câmera, que ele reencontra a força que seus músculos perderam
Eduardo Hiroshi, 31 anos, se posiciona sempre próximo da arrebentação, onde as ondas quebram com mais violência. Ele quer registrar toda a ação dos surfistas o mais próximo possível de onde ela acontece. Em Maresias, quando o bicho pega e a série aponta no horizonte, quem está na água rema com rapidez para o fundo, para fugir da chamada “zona de impacto”. É justamente nesse turbilhão de alto risco que Hiroshi irá se posicionar, em busca do melhor ângulo. O espírito de um fotógrafo apaixonado pelo surf e pelo mar fica evidente em seus cliques.
A zona, porém, é de risco. Não importa o quanto esteja preparado fisicamente ou conheça o oceano, qualquer maluco que se encontre no lugar escolhido por ele estará correndo perigo. Para Hiroshi, que sofre de miastenia grave – uma doença rara e incurável que compromete sua mobilidade –, esse perigo é muito maior. Especialmente em situações de estresse emocional e cansaço físico, quando a enfermidade o deixa sujeito a um colapso a qualquer momento, o que comprometeria sua respiração, movimentação e, em última instância, sua sobrevivência. Mas quando se descobriu portador da doença, ele não nadou para a segurança da praia. Decidiu que iria encarar o mar e dedicar sua vida à fotografia de surf. Não era o que ele fazia antes.
Hiroshi é de Mogi das Cruzes, cidade no interior de São Paulo, mas próxima ao litoral. Quando recebeu o diagnóstico, em 2013, ele ainda não fotografava, apenas surfava. Era formado em educação física pela Unifesp da Baixada Santista, e seus caminhos apontavam para a carreira acadêmica. Aprovado no mestrado na área de saúde, ele se mudou para São Paulo, porque futuros professores precisam fazer um pós-doutorado. Apesar de considerar “uma honra estar na capital paulista num laboratório muito bom, com profissionais excelentes”, ele sentiu falta da rotina de Santos, onde podia “sempre estar em contato com o mar e pegando umas ondinhas”.
A dificuldade na adaptação fez com que ele abandonasse o mestrado em maio de 2013. Voltou a trabalhar com educação física e em uma empresa da família em Mogi das Cruzes. Mas enquanto retomava a rotina em sua terra natal, mais próximo ao mar, Hiroshi começou a experimentar uma exaustão sem-fim, associada a outros sintomas estranhos. “Achava que era o excesso de trabalho. Ia pegar onda e a remada estava fraca, ficava pra trás da galera”, lembra. “Em agosto de 2013, comecei a ter visão dupla e achei que era algo que poderia ser resolvido no oftalmologista, mas disseram que estava tudo em ordem. Aí eu senti que tinha alguma coisa errada comigo.”
NÃO TEM TEMPO RUIM
Ele já havia passado um mês sem saber o que estava acontecendo, quando decidiu parar de trabalhar e sair à procura de um médico que conseguisse diagnosticá-lo. Um outro oftalmologista de Mogi notou que “um olho se movimentava e o outro, depois” e o encaminhou a um neurologista para uma bateria de exames. “Ele anotou um CID [Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde]. Fui pesquisar, descobri que poderia ser um câncer ou esclerose múltipla, aí eu assustei”, conta. “Neste ponto, minha mão já não abria mais, ficava apenas com dois dedos abertos”, lembra. “Fui fazer um tratamento na mesma instituição onde estudei, a Unifesp, só que em São Paulo, e o médico falou: 'Segura um pouquinho o surf aí'. Eu só pegava meio metrinho, aquela marolinha, até hoje não tenho remada, meu braço é muito fraco. A miastenia afeta a musculatura do corpo inteiro, mas sinto mais fraqueza no lado esquerdo do meu corpo”, explica o fotógrafo.
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Entre o diagnóstico da doença e Hiroshi assumir sua atual carreira, atrás das lentes e dentro do mar, três anos se passaram. Em julho de 2016, ele começou a fotografar. “Por estar na praia, perto da natureza, sempre acabava fazendo umas fotinhos de celular, bem amadoras mesmo, mas meus amigos curtiam nas redes sociais e me incentivavam a fazer mais. Eu nunca imaginei trabalhar com fotografia de surf por conta de verba para o equipamento”, lembra.
O fotógrafo, no entanto, conseguiu, sim, uma verbinha, empréstimo de sua mãe. “Comprei uma camerazinha e uma tele bem básica e comecei. Deu um mês e eu entendi que meu lance é estar dentro d'água.” Correu atrás da caixa estanque, ainda que os valores estivessem fora do seu alcance. Vendeu livro da faculdade para comprar uma GoPro antiga, com a qual começou a entrar no mar, até finalmente conseguir parcelar o equipamento de proteção para sua câmera. Desde então, com ondas pequenas ou grandes, com sol ou com tempo nublado, ele sempre está no mar.
MAR EM FÚRIA
Quem o encontra, magrinho, olhos puxados e de capacete, nadando entre as morras de Maresias com sua caixa estanque, não sabe que a jornada de Hiroshi para chegar ali foi muito mais árdua do que a exigente nadada através da arrebentação. Para poder enfrentar as condições pesadas de Maresias e, mais recentemente, Paúba, suas praias preferidas para trabalhar, o fotógrafo explica que se prepara muito. “Faço muita caminhada, exercícios em casa, preciso estar preparado para qualquer condição. Se fico só na remadinha constante, beleza, mas se dou um arranque muito forte, logo depois fico hiperexausto. Tenho que saber dosar minha energia”, lembra Hiroshi.
Além do preparo físico, o psicológico também é fundamental. “Maresias só me deu medo, mesmo, uma vez. Uns cinco surfistas na água, o pessoal de tow-in ali, o tamanho nem era tanto o problema, parecia o mesmo de outras vezes, só que o volume de água era tão grande que a série vinha e você começava a nadar para afundar na onda. Eu gastava todo meu oxigênio e pensava: ‘Se eu tomar esta série, vou apagar’. Na hora, é mais o cansaço que dá, mas, se você descansa, recupera."
FORÇA INSPIRADORA
Além do tratamento com remédios, de cuidar da alimentação e fazer exercícios, Hiroshi acredita que a fotografia dentro d'água exerce um papel essencial na sua luta diária para conviver com sua incurável doença. “Fiquei muito feliz, sou atendido por três médicos na Unifesp, e tem um médico lá que é um pouquinho mais metódico, mais ranzinza. Eu mostrei umas fotos e ele quase me abraçou. Não sei se ele tem alguma ligação com o surf, se imagina o tamanho das ondas. O pessoal que conhece sabe que Maresias é pauleira, né? Ele falou que estava muito feliz, foi muito legal”, conta.
A vida tem roteiros improváveis. Se hoje está feliz com o que faz, foi justamente a miastenia grave, a princípio um pesadelo incontornável, que o fez realizar o sonho de viver do que mais gosta, exercer uma profissão com paixão, em meio à natureza, próximo das ondas que tanto ama. E no lugar da compaixão, é inspiração o que ele desperta em quem – principalmente outros portadores da doença – o vê remando com seu equipamento direto para a arrebentação. “Acredito que minha história possa ter algum impacto”, diz Hiroshi. Com certeza.
Créditos
Imagem principal: Eduardo Hiroshi