Em algum lugar, no escuro de mim mesmo, procurei respirar levemente e me escutar. Havia vivido o tempo todo procurando. Nunca soube ao certo o que buscava e sempre me soube além do alcance. O que eu fora estava bem definido, não tinha dúvidas. Mas o que realmente interessava o que estava sendo. Olhei no espelho e deslizei na busca, virando-me pelo avesso.
Havia um buraco imensurável e eu vivia a louca tentativa de preencher, não sabia bem do que. Buscava ultrapassagem. O conteúdo da minha existência que jamais me satisfez. Havia um vazio sem fundo que apontava para o futuro. Mas não existiam passados ou futuros. Só o presente, transbordando aquela angustiazinha fina, pessoal.
Sendo só em mim, parecia opaco e absurdo. Não conhecia direitos ou deveres. Desesperava-me pôr estar situado num mundo mais absurdo ainda. Claro que havia uma liberdade proveniente do fato de não haver perspectiva. O buraco parecia infinito, sem beiradas ou fundo. Eu era a própria ânsia de significados. Procurava, estabanadamente, a senda que me levaria ao encontro sabe-se lá do que. Acreditava que podia alcançar um sentido para minha existência. Havia esperanças.
Trazia por dentro estranha sensação de haver pisado em algo vivo e que pagaria caro pôr isso. Estava claro que só eu poderia experimentar minha vida. Nada de segunda mão. Isso me fazia voltar à mesma questão de sempre. Quem sou eu, então? Existia para que? Meu corpo funcionava obedecendo a um automatismo inconsciente. Minha dinâmica psicológica era determinada pelo espaço social ao qual estava adstrito. O fato de estar com os outros no mundo, impunha uma estrutura que fundamentava minha psique.
Então sobrava eu. O que era eu além do corpo, além dos fatores culturais e psicológicos determinados pêlo espaço de tempo ao qual estava circunscrito? Eu era eu e não os outros e viva profunda insatisfação com o que estava sendo. E não poderia me reduzira mero observador de mim mesmo. Exigia uma existência que fosse digna e não um constante pedido de desculpas.
Embora tudo me formasse, não podia viver de fracasso em fracasso. Algo em mim me convocava a ir além do que estava sendo. Não podia me permitir ser levado pela pressão das circunstâncias. No fundo, tudo era uma questão moral. O que queria era me sentir de alma limpa, com orgulho de ser eu mesmo. A certeza de que seria capaz de enfrentar adversidades com coragem para vencê-las. A vontade era de me espremer para que de mim saísse tudo que precisava e não sabia alcançar.
Não podia continuar sendo esmagado pelas contingências. Não perdi o controle. Não podia perder o que jamais tivera. Precisava reagir ao buraco que ameaçava me engolir. Foi então que descobri as outras pessoas. Foi mesmo uma descoberta. Até então procurara nas sensações acerca de mim mesmo. Não encontrara, porque a minha busca restringia-se a meu interior.
Queria me realizar e falhava. Pensava realização como algo a ser conquistado através luta intensa. Procurava me controlar, observar, sempre focado em mim. Na verdade somente me refletia, como um cão em busca de seu rabo. Ao acender das luzes, percebi que só alcançaria satisfação existencial saindo de mim. Quando deixasse de ter a mim como o centro de minhas atenções. Quando deixasse fluir minha vida na ação, em resposta ao que a vida propunha. Quando conseguisse sair de mim, transcendendo circunstâncias às quais me atrelara pela inconseqüência de meus atos.
Precisava deixar a vida seguir seu fluxo. Não podia mais manipular. Não havia como me determinar a ser feliz. Não podia coisificar um estado de alma, objetivando-o. Era preciso prover-me de meios e ter confiança de que a natureza seguiria seu fluxo, sem exigência.
Descobri que quando me esqueço na busca do outro é que encontro a mim mesmo. Só funciono quando transcendo a mim mesmo. Era uma grande descoberta. Eu chegara a uma definição real. Simples: o alvo era o outro. Eu estava no contexto existencial de todas as pessoas e todas estavam inseridas em meu exercício de viver. Feliz seria quem esparramasse alegrias e bondades. Privar o outro do que há de melhor em mim, é crime contra mim mesmo.
Sartre dizia, com muita coragem, que o inferno são os outros. Não era aos outros mesmo que ele se referia, e sim à dificuldade que trazemos de nos relacionar com os outros. O mais grave problema existencial ainda não solucionado. Mas quando, ao cabo de inúmeros fracassos e tropeços, conseguimos resolver, então o céu são os outros. E o inferno passa a ser a ausência dos outros. Esta no bom relacionamento com a outra pessoa o motivo mais profundo de nossa alegria e felicidade de viver. Agora eu sabia: o buraco podia ser preenchido, embora preenchê-lo fosse busca permanente.
-x –
Luiz Mendes
Composta em fevereiro/1990
Reescrita em 09/10/2009.