Nollywood na Nigéria, o Cinema Noir

por Lino Bocchini
Trip #173

Trip desembarcou na Nigéria para conhecer Nollywood, a maior produção de cinema do mundo

O policial aponta nervoso para os dois brancos do set e bate boca com o diretor. Quer mais dinheiro. A “caixinha” que recebera mais cedo para deixar a equipe em paz já não era suficiente. Afinal, agora surgiram brancos na parada, logo deveria dar para tirar mais algum.

Os brancos em questão éramos eu e João, fotógrafo desta reportagem, mas o incidente não atrapalhou o dia de gravação de Bloody Hands, a ser lançado agora em 2009.

Estamos na Nigéria, país com mais petróleo que o Brasil e que se orgulha pacas do ouro olímpico no futebol em 1996, aquele que não temos. Em Lagos, 15 milhões de habitantes sobrevivem sem saneamento básico algum e circulam em uma megafrota de lotações detonadas em um trânsito bem pior que o paulistano, movido a um buzinaço insuportável, tomado por um formigueiro de camelôs entre os veículos e sem semáforos – em uma semana vimos um único funcionando.

De noite a coisa piora, a metrópole gigante, maior que São Paulo, fica totalmente escura. Postes são raros e, quando existem, não funcionam. Caos à parte, desembarcamos por lá interessados mesmo é na maior produção de cinema do mundo.

Hollywood fatura centenas de vezes mais, e a indiana Bollywood também tem produção significativa. Mas nada supera o volume brutal de filmes lançados em solo nigeriano. 2008 está fechando com aproximadamente mil lançamentos, “mas no ápice, em 2005, chegaram ao mercado cerca de 2 mil filmes, era muita coisa, uns 40 por semana”, estima a produtora e diretora Amaka Igwe, uma das mais antigas do país.

O boom começou em 1993, quando Living in Bondage (algo como Vivendo com um encosto) estourou, vendendo milhares de cópias em VHS. A chegada da tecnologia digital deu uma turbinada na produção, e hoje fitas gravadas em menos de um mês a um custo que dificilmente passa dos US$ 30 mil são vistas por até 20 milhões de pessoas.

Câmeras digitais e softwares de edição de vídeo acessíveis casaram bem com um povo contador de história e criativo que só. Quem primeiro chamou a atenção para o fenômeno foi a francesa Cahiers du Cinéma, revista-bíblia de cinéfilos mundo afora. A publicação fez um levantamento em 2004, e apontou que Nollywood, apelido da indústria cinematográfica local, tinha produzido ao menos 1.200 filmes naquele ano, contra 934 da Índia e 611 dos EUA.

A essa altura, Living in Bondage já tinha 11 anos, mas o Ocidente ainda não havia acordado para o fenômeno. E só agora, no fim de 2008, a primeira equipe de reportagem brasileira (a da Trip) foi até lá ver in loco que história é essa.

Nenhum filme no cinema

Nollywood é um fenômeno cultural único no mundo não apenas pelo volume alucinante, mas também pela forma com que o povo consome esses filmes.

Em todo o país quase não há cinemas. Fomos conhecer o maior complexo da Nigéria, que fica em The Palms, principal shopping de Lagos. São seis salas com um jeitão de Cinemark depois da gripe. Todas exibem lançamentos americanos, os mesmos em cartaz por aqui. “Lançamentos locais não chegam às salas. Só às vezes, na première”, explica Shaibu Hussreini, crítico de cinema que acompanha a produção local desde o tempo do videocassete. Como então a turma assiste à maior produção de filmes do mundo? Comprando DVDs aos milhares.

Aí entra outro aspecto único do cinema nigeriano. O esquema não convencional de distribuição, que funciona tão bem que nem parece estarmos num país de infra-estrutura tão detonada que nem mesmo o onipresente McDonald’s quis se instalar por lá. Agora no segundo semestre as produtoras entregaram de 10 a 15 novos títulos por semana nos mercados de rua de Lagos. “Numa semana chegam os títulos em inglês e, na outra, os em ioruba”, explica Gloria Paul, vendedora que há cinco anos trabalha no mercado de filmes de Surulere, bairro que concentra a nata de Nollywood.

Quatro mercados como o de Gloria recebem os lançamentos, onde vendedores de rua compram os filmes e os distribuem. Assim as fitas chegam também a Gana, ali do lado, que tem uma legião de fãs consumidores, e também ao restante da África e até para a Europa, onde fazem a alegria de imigrantes. É um modelo capilarizado de distribuição baseado em camelôs e lojinhas que funciona incrivelmente bem há mais de uma década. Tanto que a indústria cinematográfica hoje é a terceira economia do país, atrás apenas do petróleo e da agricultura.

Em Londres, onde vi um filme nigeriano pela primeira vez, os DVDs custam 5 libras nos bairros africanos. Todos originais. Mesmo na pátria-mãe não são baratinhos, saem 5 mil nairas – cerca de R$ 8. Assim, como no resto do mundo, a pirataria também está por lá. “O pirata cresce nas deficiências de distribuição. Em vez de levar caixas de filmes até o outro lado do país, o revendedor muitas vezes compra um de cada e reproduz”, comenta Amaka, que calcula que um ­blockbuster de Nollywood pode vender até 700 mil cópias regulares.

Quando vemos tais números é preciso lembrar que falamos de 140 milhões de habitantes, o que faz da Nigéria não só o país mais populoso da África, como também a maior nação negra do mundo. Negra mesmo, 100% black. Em uma semana por lá, os únicos brancos que vimos circulando pela rua (além de nós mesmos) foram dois albinos. Juro.

O galã chiliquento

Demos sorte. Durante nossa passagem por Lagos estava sendo gravado um sucesso certeiro, com dois dos maiores astros de Nollywood hoje: Desmond Elliot e Yemi Blaq. São dois figuraças que traduzem bem o espírito do povo nigeriano e também o do cinema local. “Você não imagina as coisas que acontecem na Nigéria”, diz Yemi, seriíssimo. E se põe a contar uma batelada de histórias surreais, místicas, de gente com parte com o vudu, religião local bem popular. “Certa vez, vi um homem pegar os bolinhos com as mãos direto do óleo fervente.” E tome história de homem que pula 10 m de altura, outro que leva tiro e não se machuca, mulher com olho na nuca, sereias e bolas de fogo que surgem do nada.

Os causos que o grandalhão Yemi garante serem reais seguem na linha de muitos filmes. A temática orbita entre dramas, histórias fantásticas de feitiçaria e afins, épicos tribais, aventura e romance. Tudo simples, meio novelesco e sem sexo – mesmo uma cena mais sensual é proibida pelo rigoroso órgão governamental de censura, uma das heranças da ditadura. (Parênteses: a Nigéria foi colônia inglesa por séculos, até 1960. Com a independência, entrou em cena um regime militar pra lá de corrupto. A primeira eleição presidencial foi só em 1999. Esses séculos de colonialismo seguidos de décadas de ditadura explicam a miséria em meio a tanto petróleo.)

Mas voltemos à nossa dupla de astros. Se Yemi é doce e falastrão, Desmond Elliot, por sua vez, é um astro nato. Elegante, talentoso, carismático e chiliquento. A cena da polícia corrupta que citamos no começo da reportagem é um bom exemplo. O set de que falamos era em Victoria Gardens, condomínio de alguns pouquíssimos ricos locais. E era o diretor Bode Festus quem tentava convencer os guardas de que não havia mais dinheiro por ali. A discussão esquenta, nada de o impasse se resolver, e a gravação continuava parada. Desmond então se irrita, vai para o meio da rodinha, dá um tremendo esporro nos policiais, no diretor e em toda a produção e acaba na hora com aquela palhaçada. Em poucos minutos, está gravando de novo, sorridente.

Sucesso entre desentendidos

Um grupo se reúne em frente à TV e assiste a um filme de Nollywood. Ao lado do aparelho, alguém narra o que os personagens falam. Pifou o som da TV nigeriana? A platéia é de surdos-mudos? Não, a cena é em Benin, país fronteiriço, onde se fala francês. “Como aqui falamos inglês e lá os filmes chegam sem legenda, o recurso é comum”, explica o diretor Femi Odugbemi.

Para encarar um filme inteiro com essa tradução simultânea Tabajara, tem que ser fã mesmo. Os filmes nigerianos são um brutal sucesso não apenas lá no país de origem, mas também em boa parte das 53 nações do continente, seja qual for a língua-mãe. E ainda chegam aos montes à Europa, matando a saudade de casa dos imigrantes que foram tentar a sorte no dito primeiro mundo.

E segue-se uma pancada de cenas curiosas: de repente a gravação tem que deixar o casarão que usava como locação às pressas – “é que os filhos do proprietário vão chegar da escola”, explica o produtor. Outra casa é providenciada em uma hora; muitos trabalham descalços, inclusive o eletricista, em meio a diversas gambiarras. O improviso em um país sem estúdios é geral: o tripé é de foto, inadequado para cinema, a iluminação idem, e o diretor de efeitos especiais usa um fio de nylon para fazer uma porta fechar misteriosamente – e tem uma maleta com um bando de traquitanas improvisadas; sem ar-condicionado, os atores suam litros; a estrela do filme, Mercy Johnson, uma negra (óbvio) de parar o trânsito, ajusta a maquiagem usando como espelho um retrovisor de caminhão. E por aí vai.

Curiosidades de Nollywood

  • Quinze filmes por semana chegam aos quatro mercados centrais de Lagos
  • A maioria dos filmes é em inglês, mas há alguns na língua ioruba, maior etnia nigeriana
  • Consumidores, camelôs e vendedores de rua compram os títulos nos mercados
  • Revendedores levam os dvds lançados aos 38 Estados nigerianos
  • Filmes chegam também a Benin, Gana, Camarões e demais países africanos, principalmente a outras colônias inglesas
  • Alguns filmes chegam aos EUA e à Europa, onde são consumidos pelos imigrantes africanos
  • A operação de produção e distribuição é tão grande que Nollywood é a terceira economia do país

Os nigerianos são, quase em sua totalidade, muito pobres. Não são nada burros. Sabem levar a vida, se divertem, se informam, são bem-humorados. E têm total consciência da precariedade de seu país e de sua produção cinematográfica. Em uma nação com séculos de tradição oral africana, deficiência técnica é o que menos interessa. “Nossos avós contavam histórias, sempre foi assim.

Agora, com os filmes, contamos essas histórias para mais pessoas”, simplifica Femi. E aí não interessa muito se o áudio não é 100%. O segredo do sucesso são boas histórias, familiares ao público. E com final feliz. “Definitivamente as pessoas querem ver finais felizes, sempre. A vida aqui já é muito dura”, filosofa vida a veterana Amaka. No mercado de Surulere, a vendedora Gloria Paul encarna essa paixão. “Se você não gostar do filme, traz aqui que a gente troca”, diz ao cliente que chegou em meio à entrevista. Em seguida nos olha e comenta, segura: “Ele não vai voltar, ninguém volta”.

Agradecimento: Send / Teeleap

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