Música boa de doer

por Redação

Dani Arrais, Marcelo Tas e Alexandre Inagaki dizem porque o sertanejo aquece seus corações

O sertanejo nunca deixa de fazer barulho, isso é fato. Shows das novas duplas estão sempre lotados, rádios tocam novos sucessos o tempo todo, reportagens na TV, jornais e revistas - inclusive na Trip - comprovam, de um jeito ou de outro, o poder e a força do jeito caipira de falar de amor. Mas o sucesso não traz ao sertanejo a aceitação de brinde. Por estas paragens urbanas, quem gosta de esquentar o coração com vibratos vigorosos é invariavelmente visto como alguém de mau-gosto; ou pior, não é levado a sério. O máximo de concessão é feita ao sertanejo 'de raiz', à 'música caipira' de Tonico & Tinoco, Pena Branca & Xavantinho, Tião Carreiro & Pardinho. Mas, se as referências de suas toadas ficaram em um distante passado bucólico, o mesmo não se pode dizer das duplas que deixaram o campo meio de lado e cantam a velha mas sempre atual dor-de-cotovelo.

Conversamos com três jornalistas e blogueiros que não tem vergonha de assumir que são verdadeiros fãs de música sertaneja. Descobrimos que seus namorados e namoradas os reprovam e amigos desacreditam quando eles dizem que gostam de verdade de Chitãozinho & Xororó e Zezé di Camargo & Luciano; que choraram vendo Dois Filhos de Francisco e que na maioria das vezes precisam ouvir suas músicas favoritas na solidão. Ainda assim, o consenso é de que o sertanejo tem o talento incontestável de traduzir as dores do amor como poucos gêneros. Nem Beatles, nem Stones: na hora da fossa ninguém entende melhor os dolorosos caminhos do coração.

MARCELO TAS

Repórter, ator, diretor e comandante do CQC

Você ouve música sertaneja regularmente em casa? Sua esposa também gosta?
Em casa, há um choque cultural. Eu sou um genuíno caipira do mato e minha mulher é, praticamente, uma austríaca. Na maior parte das vezes, ouço música sertaneja sozinho no carro. As vezes, me aventuro a convencer a família inteira a ouvir uma moda de viola quando estamos em direção a algum destino onde a trilha é adequada, como a cidade onde nasci ou a Serra da Mantiqueira, em Minas, onde gostamos de passar finais de semana.

De onde veio esse gosto? Influência da família, ouvia na infância, ou foi depois de adulto?
Nasci e fui criado em Ituverava, interior de São Paulo. Passei a infância na roça, entre tropeiros e peões, montava em cavalo chucro, cheguei a tocar boiada, acreditem. Naquele ambiente, a música caipira é uma trilha sonora inevitável e extremamente saborosa.

Quais suas duplas favoritas?
Em primeiríssimo lugar na minha preferência, no alto do podium das duplas caipiras estão Tonico e Tinoco. Esses dois caras são o DNA da coisa toda. São, ao mesmo tempo, os Beatles e o Led Zeppelin da música caipira. Também admiro e aprecio alguns contemporâneos: Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo e Luciano, Cesar Menotti & Fabiano, Bruno & Marrone... Tem gente boa demais por esse Brasilzão a fora.

E as que não gosta de jeito nenhum?
Não engulo aqueles cowboys do asfalto, que botam um chapeuzinho e jeans apertado, e tentam se lançar como "sertanejos". Caipira que é caipira, reconhece outro caipira há léguas de distância.

Tem algum momento ou situação especial para ouvir? 
Como dizem os caipiras: o trem fica "bão" mesmo quando o caboclo tá "paixonado"!

Sofre algum tipo de estranhamento das pessoas quando sabem que você gosta de sertanejo?
Sempre. O pessoal que me conhece da TV e internet não imagina que sou da roça. Branquelo e careca desse jeito, pensam que sou um nerd da Finlândia. Mas sou capira, com orgulho, um pé rachado lá da Alta Mogiana.

Você acha que hoje em dia é mais aceitável gostar do gênero do que anos atrás?
Sim, hoje toca sertanejo até em balada bacanuda na cidade grande. Dia desses fiz um evento hiper modernoso de uma grande empresa e fiquei feliz de ver que a festa só pegou depois que o DJ soltou um sertanejo ardido na vitrola.

Você atribui isso a quê?
É simples: a música caipira tem pegada e fala direto ao coração. Sem preconceito, escolhendo com cuidado o repertório para não cair em roubada, qualquer um é capaz de apreciar.

"Fiz um evento hiper modernoso de uma grande empresa e fiquei feliz de ver que a festa só pegou depois que o DJ soltou um sertanejo ardido"

A moda do karaokê pode ter contribuído para esse 'resgate'? Ou algum filme, novela?
Tudo ajuda. Mas a principal barreira a ser ultrapassada é a do preconceito. Já tive que gastar longas conversas com amigos queridos, como o Lobão, para convencê-los reconhecer o valor do autêntico sertanejo.

Quais são as músicas que tocam fundo ao seu coração?
"Saudades de Minha Terra", "Luar do Sertão", "Menino da Porteira", "Estrada da Vida", "Chico Mineiro", "Entre Tapas e Beijos… " Ih, rapaz, a lista é comprida demais da conta.

Citaria algum verso que julgue particularmente inspirado ou que não deixe devendo nada ao melhor da MPB?
Em "Luar do Sertão": "Se a lua nasce por detras da verde mata
 / Mais parece um sol de prata / prateando a solidão
 / A gente pega na viola e ponteia
 / E a canção e a lua cheia / a nascer no coração..."

* * *

ALEXANDRE INAGAKI

Jornalista e consultor de mídias sociais, dono do blog Pensar Enlouquece, Pense Nisso

Você ouve música sertaneja regularmente em casa? Sua namorada também gosta?
Ouço música sertaneja com a mesma frequência e prazer com que ouço jazz, MPB, power pop ou chill out. Minha namorada, por outro lado, abomina música sertaneja e só releva os momentos em que ouço Zezé di Camargo & Luciano ou Bruno & Marrone porque é apaixonada por mim. E, como todos devem saber, é só por amor que a gente é capaz de deixar passar uma e outra diferença referente a gostos pessoais, idiossincrasias musicais ou torcidas de futebol.

De onde veio esse gosto? Influência da família, ouvia na infância, ou foi depois de adulto?
Meus pais nasceram no interior de São Paulo, e ainda tenho muitos parentes que moram em cidades como Marília, Bauru e Inúbia Paulista. Mas, quando eu era criança e mais imaturo, refutava músicas sertanejas, da mesma maneira que torcia o nariz para qualquer coisa de Roberto Carlos: era tudo brega pra mim. Foi lá pelos 16 ou 17 anos que comecei a reparar nos causos engenhosos da música de raiz de duplas como Tonico & Tinoco e Tião Carreiro & Pardinho, e me tornei fã daquelas histórias dramaticamente rimadas em clássicos como "Chico Mineiro" e "Couro de Boi".

Quanto à música sertaneja romântica que invadiu as rádios nos anos 90, ela tinha passado completamente batida por mim até que meu primeiro namoro sério subiu no telhado, em idos de 99. Foi naquele momento de fossa absoluta, prostrado na cama do meu quarto e olhando para o teto branco com o desalento dos meditabundos de amor, que prestei atenção pela primeira vez nas músicas de Zezé di Camargo e constatei o valor daquelas músicas de pé na bunda cujos versos descreviam exatamente as coisas que se passavam no meu coração combalido. De lá pra cá, nunca mais deixei de ouvir sertanejo.

Quais suas duplas favoritas? E as que não gosta de jeito nenhum?
Não dá pra não citar as duplas clássicas do sertanejo de raiz, como Tonico & Tinoco, Alvarenga & Ranchinho, Zé Carreiro & Carreirinho e Tião Carreiro & Pardinho. Do sertanejo mais moderno, que recorre a guitarras elétricas e versos mela-cueca, sou fã de Zezé di Camargo & Luciano, Bruno & Marrone e Chitãozinho & Xororó. Mas confesso que parei nessa primeira geração de duplas sertanejas revelada nos anos 90. Já ouvi várias músicas do chamado sertanejo universitário, gravadas por nomes como Victor & Leo e Luan Santana. Nada que me chamasse a atenção, do mesmo modo que ignoro solenemente todos esses grupos de rock brasileiro mainstream da atualidade, como NX Zero ou Restart.

Tem algum momento ou situação especial para ouvir?
Como já passei da fase de dores de cotovelo, hoje posso dizer que ouço música sertaneja em qualquer momento. Seja numa manhã ensolarada ou numa noite insone, boto meus playlists de sertanejo no Winamp a qualquer hora do dia.

Sofre algum tipo de estranhamento das pessoas quando sabem que você gosta de sertanejo?
Já virou clichê ouvir pessoas comentando que não entendem como um cara supostamente inteligente feito eu aprecia esse gênero musical. Normal. Compreendo perfeitamente quem não gosta dos vibratos ou das vozes anasaladas típicas de duplas sertanejas. Não tem de tudo neste mundo, inclusive gente que não gosta de Billie Holiday, Big Star ou Soda Stereo?

"Já virou clichê ouvir pessoas comentando que não entendem como um cara supostamente inteligente feito eu aprecia esse gênero musical."

Você acha que hoje em dia é mais aceitável gostar do gênero do que anos atrás?
Sim, sem dúvida. Creio que o sucesso do filme Dois Filhos de Francisco foi fundamental para que as "classes pensantes" encarassem o gênero sertanejo com outros olhos e ouvidos. A regravação sensacional que Maria Bethânia fez de "É o Amor" também ajudou a romper barreiras, de modo similar ao que seu irmão Caetano havia feito ao regravar composições maravilhosas de nomes como Odair José e Peninha. Além disso, a popularização da música country e a onda de bandas "universitárias" fez com que a molecada dos grandes centros urbanos descobrisse, ainda que de maneiras meio tortas, o valor de gêneros mais populares como sertanejo e forró. Mas é bom lembrar que, nos anos 70, Elis Regina gravou "Romaria", um clássico da música caipira composto por Renato Teixeira. E Milton Nascimento, nos anos 80, participou de um álbum com Pena Branca & Xavantinho.

A moda do karaokê pode ter contribuído para esse 'resgate'? Ou algum filme, novela?
Produtos de massa como filmes e novelas sempre dão um empurrão decisivo para a valorização de algum artista ou gênero musical. Karaokês não chegam a tanto, mas não dá pra negar que certas músicas sertanejas nasceram para serem cantadas em altos brados nesses ambientes. É totalmente catártico subir num palco, pegar o microfone e se esgoelar num karaokê. Porque, pô, expor-se em público ao cantar versos como "Eu te quero mais que tudo/ Eu preciso do seu beijo/ Eu entrego a minha vida/ Pra você fazer o que quiser de mim/ Só quero ouvir você dizer que sim" vale por dezenas de sessões de terapia.

"Foi naquele momento de fossa absoluta, prostrado na cama do meu quarto e olhando para o teto com o desalento dos meditabundos de amor, que prestei atenção pela primeira vez nas músicas de Zezé di Camargo e constatei o valor daquelas músicas"

Quais são as músicas que tocam fundo ao seu coração?
Respondo em forma de Top 10, citando tanto os clássicos da viola como as músicas românticas que fazem a gente chorar até pelo chifre que não levamos:

1) "Evidências" (Chitãozinho & Xororó);
2) "Você Vai Ver" (Zezé di Camargo & Luciano);
3) "Tocando em Frente" (Renato Teixeira);
4) "Indiferença" (Zezé di Camargo & Luciano);
5) "Pé de Ipê" (Tonico & Tinoco);
6) "Tristeza do Jeca" (Tonico & Tinoco);
7) "Eu Juro" (Leandro & Leonardo);
8) "Quando um Grande Amor Se Faz" (Cleiton & Camargo);
9) "Alô" (Chitãozinho & Xororó);
10) "Couro de Boi" (Tião Carreiro & Pardinho).

Citaria algum verso que julgue particularmente inspirado ou que não deixe devendo nada ao melhor da MPB?
Não dá pra não deixar de citar as narrativas engenhosas em formato de música sertaneja, de canções como "Tristeza do Jeca", "Chico Mineiro" e "O Menino da Porteira". E os lamentos de amor que renderam jóias como "Pé de Ipê".

Mesmo nos clássicos da dor de cotovelo, dá pra pinçar versos inspirados. "É o Amor", por exemplo, merece toda a popularidade que obteve; guardando as óbvias proporções, é o equivalente aos sonetos de Camões para a música sertaneja. Em "Ainda Ontem Chorei de Saudade", composição de Moacyr Franco gravada por João Mineiro & Marciano, destaco este verso: "Melhor sonhar na verdade que amar na mentira."

Mas o grande poeta da música sertaneja é Renato Teixeira. Vide "O Violeiro Toca", parceria dele com Almir Sater, de versos como estes: "Quando uma estrela cai/ Na escuridão da noite/ E um violeiro toca suas mágoas/ Então os olhos dos bichos/ Vão ficando iluminados/ Rebrilham neles estrelas/ De um sertão enluarado". Ou "Tocando em Frente", outra parceria inspirada com o Almir: "Ando devagar porque já tive pressa/ E levo este sorriso porque já chorei demais".

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Daniela Arrais

Jornalista, dona do blog Don't Touch my Moleskine

Você ouve música sertaneja regularmente em casa?
Dia desses eu acordei e coloquei umas músicas sertanejas pra tocar. Deusa, a diarista, virou pra mim e falou: "tá apaixonada, hein?". E aí a gente começou a conversar sobre essas músicas que dizem tanto da gente. E é bem isso: ouço sertanejo do mesmo jeito que ouço um monte de coisa. Faz parte do meu repertório. E já tive ao meu lado gente que achava sertanejo uó e gente que chorava junto vendo Dois Filhos de Francisco...

De onde veio esse gosto? Influência da família, ouvia na infância, ou foi depois de adulto?
Ouço desde que me entendo por gente. Lembro demais de estar na casa da minha avó, em Recife, e ouvir no rádio os primeiros sucessos de Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo... As músicas tocavam sem parar e acabaram embalando muitas das minhas brincadeiras. Cresci cantando, mas só fui entender o quanto aquelas músicas diziam tanto pra mim quando comecei a sofrer por amor.

Quais suas duplas favoritas?
Zezé di Camargo e Luciano! Amo demais. Já vi Dois Filhos de Francisco umas oito vezes e sempre fico muito emocionada. Sonho em conhecer o Zezé algum dia na vida... Acho que eles entendem como ninguém o coração da gente.

E as que não gosta de jeito nenhum?
Não costumo ouvir essas duplas de sertanejo universitário. Mas se tocar alguma música no rádio que me disser alguma coisa, passo a ouvir com carinho...

Tem algum momento ou situação especial para ouvir?
Em momentos de sofrimento de amor não há nada melhor!

Sofre algum tipo de estranhamento das pessoas quando sabem que você gosta de sertanejo?
Super. As pessoas acham que "não combina" comigo gostar de sertanejo. Um dia uma colega perguntou espantada "mas você gosta de verdade, ouve em casa?".

Você acha que hoje em dia é mais aceitável gostar do gênero do que anos atrás?
Nem sei, viu? Nos anos 1990 o boom foi tão grande que devia ser mais natural gostar do que hoje em dia. Mas depois que Maria Bethânia gravou "É o Amor", a classe média resignificou o sertanejo. Muita gente gosta apenas porque é a grande diva cantando, mas com certeza muita gente também passou a ficar com os ouvidos mais abertos pra esse tipo de música.

"Depois que Maria Bethânia gravou 'É o Amor', a classe média resignificou o sertanejo."

A moda do karaokê pode ter contribuído para esse 'resgate'? Ou algum filme, novela?
Todo mundo ama cantar "Evidências" e afins no karaokê, mas é bem aquele momento "vamos tirar uma onda". É gostar ali, gritar, arrasar e não levar a emoção pra casa. E acho que Dois Filhos de Francisco contribuiu pra todo mundo olhar pro sertanejo com o coração aberto. Fosse o filme hollywoodiano, teria ganhado o Oscar.

Quais são as músicas que tocam fundo ao seu coração?
São tantas! Praticamente todas as da mixtape. [Dani gravou uma mixtape exclusiva pra gente, ouça abaixo]

Citaria algum verso que julgue particularmente inspirado / que não deixe devendo nada ao melhor da MPB?
Ah, são muitos! Mas fico com um trecho de "Nuvem de lágrimas": "Vivo inventando paixões pra fugir da saudade / mas depois da cama, a realidade... / É só sua ausência doendo demais. / Dá um vazio no peito, uma coisa ruim / o meu corpo querendo o seu corpo em mim / vou sobrevivendo num mundo sem paz / Ah, jeito triste de ter você... / Longe dos olhos e dentro do meu coração. / Me ensina a te esquecer. / Ou venha logo e me tire dessa solidão"

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Diz que é verdade, que tem saudade
Além da mixtape da Dani Arrais, preparamos uma playlist com músicas de rasgar o coração doído. Em meio a muito sertanejo goiano, Bob Dylan, Johnny Cash, Rolling Stones Crystal Gale e Marshall Tucker Band estão aí para provar que quando o papo é amor, a linguagem é universal. Use apenas em caso de emergência amorosa - ou pra treinar a letra que vai transformar você no rei do karaokê.

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