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Morte

"E farei a morte como faço amor: de olhos abertos." Aragon.

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Créditos: Murillo Meirelles


Por Redação

em 11 de setembro de 2006

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Sim, eu creio que farei minha morte, assim como faço a vida. Atabalhoadamente, cheio de dúvidas sobre atitudes a serem tomadas. Com certeza, no momento em que perceber que estou morrendo, que é mesmo inevitável, vou ficar ansioso de curiosidade sobre o que e como vai ser daí para frente.

Claro, vai pegar, e fortemente, a preocupação em como deixo os que dependem de mim. Queria esse tempo para construir escoras, pelo menos até que meus filhos pudessem seguir por seus próprios passos. Imagino também que, quando me olhar e ver quem sou eu, essa pretensão de ser “provedor” escoará sem deixar marcas.

Como todo pai, estou consciente de que não tenho poder algum, muito pelo contrário. Não sou capaz de diminuir em uma única lágrima a dor que meus filhos podem carregar em si. Não terei capacidade de tomar para mim nenhuma das dores que, pela condição humana, lhes estarão reservadas. Serei obrigado a vê-los sofrer e apenas sentir doer em mim também. E, quando eles forem felizes ou estiverem alegres, devo estar consciente de que não tenho nada a ver com isso.

Imagino, estarei atento. Minha morte se dará a partir de minha própria vida, não tenho dúvidas. Talvez minha morte se dê na medida em que minha idade for fechando o leque de meus possíveis, retraindo o campo de meus projetos. Com o tempo, se não for morto ou mesmo morrer de alguma doença brava, vou participar cada vez menos do processo da existência geral. Logo ultrapassarei meu limite de utilidade existencial e morrer, então, será uma realização para mim e para o mundo.

Sempre tive dificuldade de me sitiar no que as pessoas têm como normal. Isso já me fez muito mal. Não queria ser pior ou melhor que ninguém, só não aceitava ser igual à mediocridade reinante. Só fui vencer essa deficiência quando percebi que o que se conceitua como normal é uma insanidade maior que a minha dificuldade em aceitá-la.
A morte é outro assunto em que discordo de quase todo mundo. Os argumentos existentes não se sustentam. Não acredito que seja algo a temer. Provavelmente, seja muito pelo contrário – e quando for da natureza, vou realmente querer.

Vivi espalhado sem saber onde começava ou terminava. Não era expansão, tinha a ver com perder-se longa e espaçadamente. Acho que ao morrer conseguirei alguma unidade. Tenho a impressão de que tudo se reunirá e eu vou entender por que de tudo isso, tanta dor, tanta emoção e tanto medo. Tenho certeza de que as respostas existem.

No momento, a conclusão é que a morte é como o sexo: assunto íntimo demais para virar verdade. Todos mentem, de uma forma ou de outra. No paralelo ou no oficial, escondemos a morte e o sexo porque muito pouco conhecemos disso, mesmo nós, os diretamente envolvidos. É mentira quando afirmamos que desejamos um mundo transparente, sem segredos. O segredo e a hipocrisia são estruturas importantes na delicada e brutal condição humana.

Queria uma morte lúcida e meio que voluntária, qual fosse uma maneira derradeira de despojamento. A morte, então, não terá nada a tomar de mim. Já não poderei participar ativamente, amante, feliz da vida que me cerca. Nada terei que me prenda ao mundo. Vou, nesse momento, preferir o que virá a seguir, sem dúvida.

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