por Marcus Preto
Trip #214

Os nus de Vania Toledo, retratos de um mundo que era muito menos careta

Imagens e memórias de Homens, o lendário livro de retratos de nus masculinos de Vânia Toledo, produto de um tempo em que artistas não eram celebridades, a nudez não era um produto de marketing e o mundo era muito menos careta

Vania Toledo era, segundo ela própria, um zé-ninguém naquele ano de 1979. Trabalhava como jornalista, escrevendo para revistas como Interview e Pop. Fotografia era um hobby (mesmo que, no ano anterior, tivesse assinado as capas dos LPs de dois amigos, Ney Matogrosso e Zezé Motta).

E foi assim, como zé-ninguém, que entrou na casa de Caetano Veloso para fazer o convite. Queria fazer uma longa entrevista com ele. E uma foto. Nu. Era um pouco mais de quatro da tarde e Caetano, que raramente vai dormir antes de o dia clarear, tinha acabado de se levantar. Vania cumprimentou o cantor e foi logo vendendo o peixe: o material integraria um livro, seu primeiro, em que os textos seriam os protagonistas. As fotos apenas o ilustrariam. Além de Caetano, a jornalista escalava um elenco que, segundo seu olhar, também cabia no conceito "índios contemporâneos" que amarraria o trabalho – homens libertários, que valorizam a própria nudez. Ele topou.

Ao mesmo tempo em que seu coração comemorava a chegada do novo personagem, a cabeça da jornalista tratava de arrumar uma brecha na agenda complicada dele: "Que dia é bom para você, Caetano?". Ele respondeu, já se levantando para o quarto: "Vamos fazer agora, venha!". Tirou a roupa. Mas conversava como se estivesse vestido.

"Foi muito simples", lembra Caetano, 33 anos depois. "Vania era legal, o mundo era ainda um tanto menos careta do que veio a ficar. Não tive nem vergonha nem excitação com a ideia da foto. Achei natural. Fiquei anos sem ver essa fotografia. Quando a revi, gostei. É bonita. Eu era muito mais bonito e muito melhor quando tinha aquela idade. A única coisa que me incomodava em minha figura era ser magro demais. Mas isso realçava meu pau, fazia parecer que ele era grande. Anos depois, bem menos magro e muito assustado, quando as atrizes de Bacantes do Oficina tiraram minha roupa diante do público, um jornalista, que sempre pareceu ter uma fixação em mim, escreveu que meu pau era pequeno. Não com essas palavras, mas usando uma metáfora de espada e faquinha, sei lá. Quando o pau da gente cresce, como os peitos das meninas, entre os 13 e os 14 anos, a gente até se assusta com a mudança. Eu era magérrimo e parecia uma criança aos 14 anos, mas meu pau virou um pau de adulto e me parecia enorme. Depois houve quem achasse que era grande. E eu, tendo visto então muito poucos paus, acreditava. Depois aprendi que não era bem assim. No livro de Simone de Beauvoir sobre a velhice está escrito que pênis diminuem de tamanho com a idade. Foi uma informação importante. O que eu gosto na foto de Vania é que meu corpo está harmônico. O pau, em parte escondido pela coxa, tem uma relação equilibrada com o resto."

Publicado em 1980 pela Livraria Cultura Editora, Homens se tornaria obra referencial na fotografia brasileira. Mas não só. Também pode ser analisado por seu caráter comportamental. Retrata, como Caetano evidencia nas palavras acima, a relação do homem com o próprio corpo na virada dos anos 1970 para os 1980 – e a evolução disso até os dias atuais. São 28 fotos de famosos e anônimos, donos de corpos dos mais variados tipos e idades. Fotos mais explícitas, como as de Caetano e Ney Matogrosso, convivem com outras em que a nudez era parcial ou apenas insinuada, caso as de Nuno Leal Maia, Walter Franco e Roberto de Carvalho.

O livro teve uma primeira prensagem de mil exemplares, logo esgotada. Os 3 mil da segunda leva também voaram. Hoje, um exemplar em bom estado chega a custar R$ 450 em sebos. As entrevistas, ao contrário do previsto, nunca foram publicadas. Vania conta que o editor do livro, Pedro Herz, considerou que as palavras poderiam render mais problemas com a censura do que os paus e bundas à mostra.

 

"Não fiz o livro para escandalizar, ainda que as pessoas se choquem com ele até hoje. O que eu queria era encontrar uma beleza no corpo masculino que não dependesse do apelo erótico. Era como fotografar um filho", diz Vania

 

"O teor do que eles diziam era ligado ao que viria a acontecer na sequência: a abertura física, do sexo mais livre e com menos culpa. Todos os fotografados diziam coisas do tipo ‘ninguém manda no meu corpo’", diz Vania. Mas as fotos ficaram para construir a história e dar os impulsos de que ela precisava para largar mão da escrita e se dedicar exclusivamente à imagem, tornando-se fotógrafa profissional. "Não fiz o livro para escandalizar, ainda que as pessoas se choquem com ele até hoje. O que eu queria era obter respostas, encontrar uma beleza no corpo masculino que não dependesse do apelo erótico. A nudez masculina só aflorou com a cultura gay, dos corpos musculosos e besuntados de óleo. Meu livro não é dessa estética. Não usei artifício nenhum para evidenciar a forma, a musculatura. Era como fotografar um filho. Muitas mulheres vieram me agradecer por isso."

Não por acaso, Juliano Toledo, filho de Vania, está no livro. Tinha 8 anos e só topou posar nu para as lentes da mãe se seus heróis pudessem estar junto com ele. Heróis de brinquedo. Uma nudez coletiva. "É Freud, é Jung, é tudo", comenta Walter Franco. Apesar do temperamento tímido, o músico topou posar para Vania. Passou por um ritual de relaxamento – que incluiu muita conversa e bules de chá – até tirar primeiro a camisa, depois o calção e, por fim, quase toda a roupa. A sessão foi feita na casa da mãe do músico. Na banheira. Acabada a sessão, puxou uma toalha para se secar. Bordada nela, estava a palavra "mamãe". Vania fez o clique e foi essa a foto escolhida para o livro. "A água é a origem, o útero. É infantil, como se fosse uma brincadeira. Um homem voltando à infância, à espera da mamãe que o tire do banho. É o que todo homem deseja", diz. Deve haver alguma verdade nisso, já que, segundo a fotógrafa, a maior parte de seus personagens pediu para ser clicado no chuveiro, na piscina ou no mar.

Ainda que a seco, Roberto de Carvalho também embarcou na viagem familiar. Colocou os filhos João e Beto Lee na frente dele na foto – o que, estrategicamente, serviu para que mostrasse pouco mais do que o peito e as coxas. "Na realidade, não estou pelado na foto, estou de sunga", lembra Roberto. (Vania replica: "O que está acontecendo? As pessoas encaretaram! Todo mundo ficou nu durante as fotos. Até porque o livro era sobre homens de pensamento libertário, não sobre homens que precisassem fingir que pensavam assim.)"

Roberto de Carvalho diz que toda a ideia foi de Vania. "Minha amicíssima, naquela época éramos vizinhos. Lembro que topei na hora. O livro repercutiu pra caramba e virou coffee table book de todas as boas casas. . As fotos possuem uma delicadeza feminina, um resguarde de mistério – algo bem oposto à tendência ao explícito que a preferência masculina sempre exige. Um fotógrafo homem só poderia criar algo daquela maneira se estivesse usando esse enfoque feminino."

Sim, as fotos de Vania também levantaram discussões sobre as nuances entre os olhares feminino e masculino sobre a nudez. "Mas o pau não era o meu foco principal. Se fosse, teria usado closes e a estética teria que ser totalmente outra. Minhas fotos incluíam, isso sim, um conjunto de nudez", ela afirma. "Mas ninguém falava em ‘pau’ durante as sessões", Vania garante. Segundo ela, o único a atravessar essa regra foi o compositor e agitador cultural Ezequiel Neves: "Eu topo, mas quero fazer a foto de costas. Meu pau é muito pequeno e não preciso ficar mostrando".

Só ele pensou nisso? Claro que não. Tanto assim que, quando o livro foi lançado, a fotógrafa ouviu uma pergunta se repetir, e se repetir, e se repetir, vinda de olhares de ambos os sexos, de todas as idades: "Vania, fala a verdade: quem desses homens tem o pau maior?". A fotógrafa acalenta a vontade de fazer um segundo volume de Homens, em busca dos "índios contemporâneos" dos nossos dias. Mas teme não conseguir realizá-lo. "Em 1980, não existia o pensamento ‘celebrity’ que comanda a cabeça das pessoas hoje. Nudez virou um produto. Tudo é mercado. E o mais provável é que eu tivesse que pagar pagar cachês para todos os homens que quisesse fotografar."

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