O cantor e ator fala dos tempos de galã, das mulheres, dos 120kg, da rejeição e da reinvenção na TV
Com 120 quilos desigualmente distribuídos por 1,77 metro, e equilibrados com 18 anos de psicanálise, o ex-roqueiro irreverente Leo Jaime amargou o ostracismo e uma doença séria, mas manteve a verve e se reinventou para muitos lados. Aqui, o ator de Malhação e expert autodidata em relacionamento homem-mulher fala de fome e de fartura, e dispara: “preconceito estético é uma coisa nazista”
No show de Leo Jaime, quando a corda de um instrumento arrebenta, o cantor aproveita a substituição para animar o povo, e não se poupa da própria ironia: “Barriga tanquinho é para os fracos! Eu tenho uma lavadora turbo automática com 12 programas!”. Ou então: “Aqui não tem nada P, é tudo GG”. Perto de completar 53 anos (em abril), o cantor nascido em Goiânia é um raro caso de talento polivalente e reconhecido: apresentador, ator, cronista, roteirista, comentarista esportivo, bailarino (quem já o viu no palco, em musicais, sabe), consultor de redes sociais (já deu até palestra no Senado ensinando a lidar com “opiniões contrárias na internet”), pitaqueiro especializado em relacionamento homem-mulher e craque em conversas fiadas em geral. Tudo isso em 120 quilos desigualmente distribuídos por 1,77 metro, mas equilibrados com 18 anos de terapia (“dez com um analista freudiano legítimo, ortodoxo, no divã; cinco de terapia corporal e três de uma outra terapia, mista”).
A adiposidade que se concentra no abdome, no pescoço e nas bochechas é consequência de uma doença rara, o pan- hipopituitarismo. A glândula pituitária de Leo não produz hormônios, e a ausência de um deles, o GH (sigla para growth hormone, hormônio do crescimento), leva ao acúmulo de gordura intravisceral, que, além de perigosa para a saúde, tem um efeito estético execrado pela sociedade atual: a barriga. Isso não o impede de fazer bonito ao lado da lindona Fernanda Lima no programa Amor & sexo, da Globo, nem de se destacar entre jovens sarados no elenco da novela teen Malhação, da mesma emissora, vivendo um roqueiro veterano. No canal a cabo GNT, comanda o reality-show Detox do amor, e há pouquíssimo tempo, iluminava as mesas do Saia justa com frases como “quem repara demais na celulite das moças acaba preferindo bunda de rapaz”.
Nos anos 80, magro, Leo Jaime posava de sunga no encarte de seu primeiro LP (o impagavalmente intitulado Phodas “C”) e aparecia de cueca em videoclipes. Dominava rádios FM com até cinco músicas no top 10, namorava cobiçadas modelos, lotava ginásios por todo o Brasil e atuava em filmes pop como As sete vampiras e Rock estrela.
Nada mau para o garoto que saiu de casa cedo e até hoje reluta em falar sobre a família na qual diz ter nascido “acidentalmente”. “Sou o terceiro filho de um casal muito jovem, meus pais tinham 21 anos. Não tive uma infância feliz, não tive adolescência feliz”, resume, com desconforto. Leo deixou Brasília aos 17 anos, com “uma mão na frente e outra atrás” (como bem define seu sucesso “O pobre”), disposto a ser ator de teatro. O plano inicial era se juntar à trupe de Zé Celso Martinez Correa, em São Paulo, mas uma oportunidade na companhia do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928-1992) o fixou no Rio de Janeiro.
Em meio a empregos variados, como vendedor de roupas em loja, barman e iluminador de teatro, conheceu Cazuza quando nenhum dos dois nem sequer sonhava em viver de música – “não era uma opção real”. Enquanto se dividia entre duas bandas – Nota Vermelha e João Penca e seus Miquinhos Amestrados –, esnobou uma vaga no Barão Vermelho e indicou o amigo. Gravada por Eduardo Dusek, junto com os Miquinhos Amestrados, uma de suas canções, “Rock da cachorra” – aquela do refrão “troque seu cachorro por uma criança pobre” –, foi importante para consolidar a nova geração do rock projetada com “Você não soube me amar”, da Blitz. “Os livros sobre a música desse período se esqueceram dessa história”, observa.
Na virada para os anos 90, em crise com a própria imagem de “roqueiro emergente”, tentou uma mudança para um lado mais adulto e suave. Acabou amargando longo ostracismo. “Chega o momento em que vem o dilema: se faço uma coisa nova, estou abandonando meu público e perdendo a essência; se sigo a mesma linha, sou um artista esgotado, que só se repete. Ou seja: se quiserem que você esteja errado, você vai estar errado, não importa o que faça”, lembra.
Quando, em 1992, começou a sofrer as consequências da doença, já tinha razoável bagagem como colunista. No jornal O Globo, havia escrito sobre música, futebol e TV. Em revistas como Capricho e Desfile, aventurou-se por temas de comportamento. O clique, porém, veio com um convite para assinar textos em O Dia. “Escreve sobre relacionamento, porque tem pouco homem que fala disso e as mulheres querem saber o que os homens pensam”, pediu-lhe o editor Joaquim Ferreira dos Santos. “Foi essa sacada dele que me fez perceber todo um caminho profissional”, credita Leo.
Seu "Rock da cachorra", de 1981, ajudou a calibrar o espírito irreverente da primeira safra do rock carioca
Em 2000, voltou a conhecer o sucesso nos palcos, dançando e cantando no musical Vitor ou Vitoria. “Por causa da peça, decidi morar em São Paulo. Como ator, não poderia imaginar nada melhor: um ano em cartaz ao lado de Marília Pera, com a melhor bilheteria possível. Imaginei: ‘Pronto, vou ficar aqui. Vai ter muito trabalho pra mim’. E não teve.” Veio um contrato com a Abril Music, que evaporou junto com o resto do champanhe das taças da festa de assinatura. “O disco não saiu e eu acabei ‘pendurado na brocha’, morando numa cidade onde eu não tinha sequer banda. Mas São Paulo foi fundamental para a retomada da minha carreira musical. Voltei às origens: fui tocar em bar.”
Foram três anos de boas experiências no Na Mata Café, no Itaim, com a retomada de contato com colegas da geração do rock e um encontro que deu em casamento. Há oito anos, não larga da psicóloga Daniela Lux, de cujo ventre saiu David, 5 anos e meio, a concretização do sonho maior do cantor. “Ser pai é minha verdadeira vocação.” Os três moram hoje no Rio, no Jardim Botânico, sem babá, com energias concentradas na vida familiar. A rotina de gravações não permite que Leo viaje muito, mas ele tem rodado o Brasil com o show Festa, centrado em canções dançantes, dele e de outros autores. Depois da recente parceria com Rita Lee (“Tchau”, feita para Malhação) e da faixa nova, “Fui”, incluída no recente relançamento de Todo amor (seu disco de intérprete, de 1995), ele planeja lançar, finalmente, o primeiro DVD em 30 anos de carreira. Depois, outro show, intimista, abrindo a gaveta de inéditas, e um novo projeto de talk show. “Eu tenho muito para comemorar.”
Comentou-se nas redes sociais que os participantes do Big Brother, muito jovens, não conheciam suas músicas. Talvez não soubessem cantar uma ou outra, mas, no geral, conheciam. Quem viu toda a apresentação percebeu isso. De todo modo, tem um gap mesmo entre quem me conhecia antes e o público de agora. Fiquei muito tempo sem gravar, passei muito tempo sem sequer mostrar música para as pessoas da indústria. Parecia que eu não teria outra oportunidade.
Você lançou um disco como intérprete em 1995, depois de cinco anos na geladeira de uma gravadora. E só voltou a lançar disco solo em 2008. A atuação multimídia de certa forma compensava as frustrações com a carreira musical? Quando fui trabalhar em novela, em 1988, depois de muitos hits de rádio, e, depois, quando comecei a escrever no jornal O Globo, entenderam que eu estava dando as costas para o sucesso. Mas eu só estava sendo fiel a mim mesmo. Estava com vontade de escrever e atuar, de ser a pessoa que sou hoje. Precisava de um ano sabático, para pensar para onde ir, o que seria impossível naquela maratona de shows, filmes etc. Estou em paz com o que fiz antes. Mas naquela hora o lugar que tinham pra mim, de roqueiro irreverente, era um sapato apertado para o cara que eu tinha me tornado. Eu precisava fazer outras coisas.
"A mensagem era esta: 'Não queremos sua música, você está gordo, decadente, acima do peso..."
Foi uma crise de maturidade? É. Fiz 30 anos e pensei: “O que vou fazer agora?”. E calhou de vir o Plano Collor, justamente quando eu tinha entrado para a gravadora Warner, em 1990. Muitos discos foram adiados, carreiras deixadas em suspenso. Lá tinha Gilberto Gil, Ultraje, Kid Abelha, Titãs, Barão Vermelho. E, no último lugar da fila, eu. O tempo foi passando. Depois de dois anos, você deixa até de ser assunto. Quando consegui, depois de longa pendenga jurídica, lançar o Todo amor, em 1995, o cenário parecia favorável de novo. Conseguimos encaixar música na novela das oito, mas não repercutiu, não rolou. Até que eu fosse gravar outro disco, passaram-se 13 anos. Nesse tempo, muita gente teve oportunidade de gravar. Eu não. A certa altura me cansei de ligar pras pessoas e não ser atendido. Tive de tocar minha vida pro lado em que o vento estava batendo. Permaneci fazendo shows, trabalhando em musicais, escrevendo pra TV. E isso foi solidificando uma trajetória que hoje parece muito clara. Minha atividade é múltipla.
Em que momento ficou claro que a sua imagem estava prejudicando sua carreira de cantor? Basicamente a mensagem que me passavam era esta: “Não queremos ouvir a sua música porque você está gordo, está decadente, está acima do peso”. É curioso porque falavam isso do Elvis também, né? Ele cantando como nunca e as pessoas dizendo: “Ah, está decadente”. Já com outros artistas que apareceram gordinhos desde o começo, como o Ed Motta, ninguém via problema. Não estou me comparando a ninguém. Mas o Elvis, mesmo brilhante, tinha essa cobrança de ser galã. E ele morreu novo, com 42 anos. O fato é que fazer aniversário não faz bem pra saúde. E o fã gosta de gente que morre jovem. Se você quiser satisfazer mesmo o seu fã-clube, morre logo! [Risos.] Aos 27, é a hora perfeita pra morrer. Nego adora! [Risos.]
Como percebeu a mudança do seu corpo? Ficou deprimido ao ver que estava engordando? Eu tenho um problema de saúde chamado pan-hipopituitarismo. Ou seja, eu não tenho hipófise, glândula que produz hormônios importantíssimos. Por alguma razão, fiquei assim; acho que foi por causa de um tombo de moto na adolescência. Você leva uma pancada na cabeça, ela incha e comprime a hipófise, que depois pode voltar ao normal. Ou não. É o meu caso. Não tenho produção hormonal, preciso tomar todos – todos! – os hormônios para o resto da vida. Fiquei muitos anos tomando corticoide, e sem tomar GH, o hormônio que faz com que você não acumule essa gordura intra-abdominal, que forma a barriga. Malhei muito a vida toda, tenho boa musculatura, só tenho dobra de gordura no pescoço, no rosto e no tronco. Meu percentual de gordura não é alto, tenho muita massa magra. Meu colesterol é baixo, a glicose é baixa, tenho saúde boa. Mas tenho aparência de uma pessoa muito mais gorda do que sou.
Como você controla o peso? Eu tenho 1,77 metro. Teria que pesar, para ficar magrinho, 105 quilos. Precisaria perder uns 15. Tenho controle, nutricionista, acompanho tudo. Mas é muito difícil baixar tudo isso, porque precisaria malhar todo dia. E malhar pesado. Não tenho tempo nem toda a disposição necessária. Tinha vontade de fazer o “Medida certa” [quadro do Fantástico que desafia celebridades a perder peso seguindo um programa de exercícios e dieta], adorei quando cogitaram meu nome por lá. Queria que as pessoas vissem o que eu faço. No transport, preciso trabalhar no índice máximo de dificuldade, o maior peso, para conseguir a frequência cardíaca desejável. Se você pegar um professor lá, forte, não sei se vai conseguir fazer com essa carga. Eu gostaria de ficar magro, inclusive para garantir o futuro do meu filho. Sei que o preço que eu pago profissionalmente é enorme. Mas não sei se seria mais fácil se eu estivesse magro.
"Falavam do Elvis também. Mesmo brilhante, tinha a cobrança de ser galã"
Você tira a camisa sem embaraço, em qualquer lugar? Normalmente. Eu sou um homem feliz, bem-sucedido afetivamente. Sou mais feliz hoje do que em outros momentos da vida, em que estava magrinho. Não se pode ter tudo, né? [Risos.] Tem corpo de tudo quanto é jeito. Você olha o cara, acha gordo, e ele é um campeão olímpico. E, cá pra nós, as mulheres que agradam o mundo da moda não são as preferidas da maioria dos homens.
E você também gosta de mulher cheinha? Olha... Eu gosto é da minha mulher! [Risos.]
Mas a sua mulher é magrinha? Ela é mignon [risos].
Você já teve relacionamento com alguma mulher acima do peso? Já... Já. Não tenho problema nenhum com isso. Aí a pessoa é mais importante do que a altura, os centímetros, os quilos etc. A forma como ela lida com isso também influencia.
Quantos casamentos você já teve? Sou casado apenas agora. No papel, só agora. Cheguei a morar junto, mas não era casamento.
Quantos foram? Olha, não gosto de fazer auê da minha vida íntima, nem sou casado com alguém do interesse geral. Minha mulher é psicóloga, Daniela Lux Jaime. Ela clinica e está fazendo formação em Lacan.
Qual é a sua bagagem em psicoterapia? No total, fiz 18 anos. Dez com um analista freudiano legítimo, ortodoxo, no divã. Cinco de terapia corporal e três de uma outra terapia, mista.
Você buscou as outras porque ficou faltando algo depois dos dez anos de Freud? Fui pra terapia corporal, análise bioenergética, da linha do Lowen [Alexander Lowen, 1910-1992, psicanalista americano, discípulo do austríaco Wilhelm Reich], quando estava começando a sentir o efeito da doença. Minha terapeuta disse uma coisa fundamental: “Seu corpo é que está fazendo mal para sua cabeça, não o contrário. Você está bem, centrado, positivo; tem algo de errado é no seu corpo”. A sacação resultou no meu diagnóstico. Aí, quando ia me casar e queria ser pai – acho que essa é minha verdadeira vocação –, fui fazer terapia para me preparar.
Como você e sua mulher se conheceram? É engraçada essa história. E um tanto reveladora sobre a questão física não ser importante. O lado pessoal se impõe sobre os atributos físicos. Na clínica de um amigo, em São Paulo, fiz tratamento com uma fisioterapeuta e fui com a cara dela instantaneamente. Um dia, estou lá no bar e vejo aquela moça se aproximando, com meu amigo. “Tô achando você estranha”, eu disse. E ela: “Já sei, você deve estar achando que sou minha irmã gêmea” [risos]. Não sabia que a fisioterapeuta tinha irmã gêmea. Mas instantaneamente bateu.
Você cita a paternidade como questão fundamental na sua vida, algo para o qual você fez questão de se preparar. Como é sua rotina como pai do David? Eu levo a sério esse negócio de ser pai. Não tenho nenhum parente na cidade, é tudo com a gente mesmo, eu e minha mulher. Meu filho nunca teve babá. Hoje o David foi parar na minha cama no meio da noite. Acordei cedo para levá-lo para a escola, ele está começando o pré 2. Buscá-lo é tarefa minha também. Temos uma rotina chamada “programa de meninos”. Jardim Botânico, cinema, teatro. Só os dois. Dá uma intimidade, um laço apertado. Nos primeiros 45 dias, só eu dei banho nele. É meio tenso, tem até mãe que amarela, mas aprendi logo. Agora estou ensinando o David a tocar violão. Como tenho que tomar hormônio todo dia, ele fica me olhando aplicar a injeção e pediu pra aprender. Já aprendeu, aliás. Ele é calmo, não se assusta com sangue. Se tiver interesse por música ou medicina, tá lindo. Não faz diferença pra mim.
Você não gosta de falar muito da sua infância e adolescência. Já citou em entrevistas que seu pai não era muito presente. Na música “Já foi papai”, você diz: “Pai, de você eu só quero grana/ e não está no meu programa/ deixar de ser quem eu sou/ Pai, anote o número da conta do meu banco/ e deixe lá a mixaria/ que é o que você tem pra dar (...)/ Pai , suas ideias são uma delícia/ e gosto delas tanto quanto amo a gripe e a polícia”. Não era uma música para a pessoa. Era para a entidade, até porque... [Pausa.] Eu nunca usei minha vida pessoal como elemento dos meus trabalhos. Porque, quando você tem uma história dura, de sacrifício, pode parecer que você está se fazendo de vítima. Posso falar que escolhi sair de casa cedo, escolhi uma carreira e uma vida com riscos. Torço para meu filho não ser o adolescente que eu fui. Eu era um fio desencapado. Durante muito tempo, vi as dificuldades com muito mais clareza do que as possibilidades. Depois de ter reconhecimento, de fazer sucesso no Brasil inteiro, como é que eu fico 18 anos sem lançar um disco de inéditas? É uma dificuldade enorme lidar com isso! Fazer uma música pra quê? Ninguém vai ouvir, ninguém quer. Até que apareceu a internet e eu entendi que não era bem assim. Aí, fiz a minha estrada.
Na TV, e também como cronista, você acaba sendo um especialista em relacionamentos. Em sua trajetória pessoal, o que acha que lhe dá autoridade para falar do assunto? Eu não aconselho, debato. Não sei nada, apenas dou meu pitaco. Se a sua visão faz pensar, é o suficiente. Vou citar uma frase que disse outro dia no Amor & sexo: “Pau duro não é obrigação, é merecimento”. É o início de uma reflexão. A mulher pode se questionar: “Você acha que, só de tirar a roupa, o cara já tem que ficar de pau duro? Já para você se excitar, ele precisa se dedicar?”. Para o homem, vale pensar: “Você é uma máquina? Tirou a roupa, tem que se excitar ou há algum sentimento envolvido também?”. Gosto do assunto. Sempre tive muitas mulheres, e falo isso no sentido mais amplo e menos cafajeste. Levo muito a sério a amizade com as mulheres. Se eu estiver numa roda com 39 mulheres, fico à vontade. Com 39 homens, não sei. O Clube do Bolinha nunca me interessou muito. No da Luluzinha, eu sempre quis dar uma espiada pra ver o que estava rolando. Mas, no fundo, a mistura é melhor: se tiver uma mulher no meio, a roda dos homens melhora. E, se tiver alguém gay, melhora ainda mais.
"Torço para o meu filho não ser o adolescente que eu fui. Eu era um fio desencapado"
Você conheceu o Cazuza muito antes de os dois ficarem famosos. Tinha ideia de que ele poderia se tornar a grande voz poética da sua geração? Há outros grandes dessa época – Júlio Barroso, Renato Russo. Mas é indubitável que o Cazuza é grande. Quando a gente estava sem saber o que fazer da vida, ele pensava em ser ator. Escrevíamos, um mostrava coisas pro outro. Eu achava que seria um poeta como os da geração mimeógrafo, Nuvem Cigana, Chacal. A música não era uma opção real nem pra mim, que já fazia canções. Quando os caras do Barão me chamaram pro ensaio deles, eu cantava em duas bandas, Miquinhos e Nota Vermelha. Fui e pensei: Cazuza! Ele não imaginava que ia fazer parte de uma banda, nem gostava da ideia. Eu sabia que ele compunha, mas ele dizia que romperia relações se eu contasse pra alguém. Ficava incomodado com a possibilidade de trabalhar como cantor ou músico, porque o pai dele era diretor de gravadora.
É famosa a história de que, jovem e sem grana, você de vez em quando ia à casa dele filar um almoço. Cazuza brincava, dizendo para a empregada: “Dá comida aí pra esse pobre”. Como você encarava esses tempos de dureza? Até onde isso o marcou? Eu não gostava de recorrer a isso, ficava muito envergonhado. Não ter o que comer – passar alguns dias sem um pedaço de pão em casa – é sobretudo humilhante. Dá uma sensação que vai além do físico. Quando fiz “Rock da cachorra” [do refrão “Troque seu cachorro por uma criança pobre”], eu estava tratando desse sentimento. Por trás da fome há um desconforto ainda maior pelo desamparo. A falta de afeto é o mais triste. Demorei bastante até conseguir as coisas na música. Eu estava na gênese da Blitz também: a Fernanda Abreu era minha amiga e eu a chamei para fazer backings no Nota Vermelha, que durou um verão e que a gente montou pra tocar no bar do pessoal da Casseta Popular [Emoções Baratas]. A Blitz tinha saxofone, era outra proposta, sem coral feminino. Mas, depois de verem a Fernanda, mudou e acabou dando supercerto. Por um tempo, a gente morou junto, eu, a Fernanda e o Luís Stein, com quem ela foi casada por quase 30 anos, em um apartamento no Cosme Velho [zona sul do Rio de Janeiro], sem elevador e sem telefone. Eu vim de Brasília com 17, 18 anos, sozinho. Trabalhava com o que dava. Fazia produção de show, operava canhão de luz, era contrarregra, produtor, vendedor de roupa em loja, barman. Eu não imaginava que fazer música fosse profissão, fonte de renda. Como eu já fazia teatro, primeiro em Goiânia, depois em Brasília, imaginava que esse pudesse ser meu caminho.
Então, foi o teatro, e não a música, que definiu sua ida para o Rio de Janeiro? Vim parar na cidade assim: estava saindo de Brasília para morar em São Paulo e trabalhar no Oficina, do José Celso Martinez Correa. Passei antes no Rio para visitar uns amigos. Fui num ensaio da Teatro do Movimento, companhia de dança e teatro do Klauss Vianna [coreógrafo mineiro, 1928-1992]. Um dos atores não ia poder fazer o espetáculo, aí me chamaram e eu topei. Deu o maior pé: o Yan Michalski, crítico de teatro dos melhores, ficou impressionadíssimo com a minha estreia. Acabei convidado para entrar na companhia. Eu paguei um preço enorme pra começar. Mesmo quando eu já estava com música tocando em rádio, nem sequer tinha uma guitarra própria. O fato de eu não ter um suporte econômico me deixou em situação complicada. Toda vez que sentava numa mesa para negociar, e os caras do outro lado sentiam que eu precisava mais da grana, pegavam mais pesado. Mas eu andei tanto que não consigo ver minha história como uma trajetória que não seja de muito sucesso. Agora, é luz e sombra, né? Uma hora todo mundo gosta das coisas que você fala; na outra, você diz as mesmas coisas e está tudo errado. Eu conheço os dois lados do caminho. Então, quando começaram a vir essas histórias por causa da minha aparência, eu de certa forma já estava habituado. Sempre nadei contra a correnteza. Não que eu concordasse. Eu fico puto até hoje. O preconceito estético é uma coisa nazista. Mas consegui ultrapassar isso.
Você ficou vermelho quando Monique Evans foi ao Amor & sexo e lembrou que um certo Leo Jaime, que ela namorou nos anos 80, lhe proporcionou o primeiro orgasmo, já aos 30 anos. Como isso pôde acontecer com um ator que por pouco não fez parte do grupo do Zé Celso? Ela falou de um jeito muito educado. Mas, de qualquer forma, fico meio... [Risos.] É um pouco embaraçoso. Sou tímido. Falar da minha vida íntima me deixa constrangido. Mas cantando diante de 15 mil pessoas me sinto tão à vontade quanto no banheiro da minha casa. Um amigo me falou: “Você gosta de se meter em roubada, até na pelada, quer ser centroavante, arruma sempre responsabilidade”. É o meu jeito: escolher o desafio maior. Tenho enraizada em mim a certeza de que sempre pode dar certo. Sempre pode melhorar.
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Imagem principal: Thelma Vilas Boas