Bali virou um paraíso do tráfico – com brasileiros ocupando papel central nisso. Trip conversou com Kathryn Bonella, que passou anos enfurnada nas cadeias de lá
Em 1971, o filme Morning of the earth, dos australianos Alby Falzon e David Elfick, inaugurou o Bali dream, o sonho de viver a vida sobre as ondas num paraíso perdido na Indonésia. Começava assim a história contemporânea da chamada "ilha dos deuses". O movimento hippie estava no auge, com hordas de jovens pegando a trilha do Oriente. De lá para cá, Bali atravessou várias marés. Nos anos 80 e 90, as raves, as drogas psicodélicas, o verão sem fim. Nos anos 2000, na esteira da fama mundial, aportou o dinheiro. Com ele, a transformação do recanto selvagem dos surfistas e desterrados na Ibiza oriental. E também no paraíso das contradições.
"Um paraíso, sem dúvida, de natureza exuberante, premiado pelo sol, pelas ondas perfeitas. Excelente comida. Mas os turistas bebem seus coquetéis sem a menor noção do que se passa ao redor", diz a jornalista australiana Kathryn Bonella, autora de três corajosos livros sobre o submundo dos contrários de Bali: Schapelle Corby – minha história, biografia de Corby, uma estudante australiana presa com 4 quilos de maconha; Hotel K, a vida na prisão de Kerobokan, presídio de Denpasar, a capital da ilha; e, o mais recente, Snowing in Bali, um mosaico de loucas histórias de traficantes, entre eles um grupo de brasileiros encabeçado por Marco Archer, fuzilado na Indonésia em janeiro, e Rodrigo Gularte, morto em abril.
Cada um dos livros de Kathryn é um atestado: a combinação da pena de morte para o tráfico de drogas, lei que vigora na Indonésia desde 1997, e o estilo de vida hedonista, regado a baladas intermináveis, tornou Bali o cenário perfeito para o florescimento da corrupção. Lá, money talks, como diz a jornalista. "Qualquer motorista de táxi em Bali vai te dizer isto: 'dinheiro fala'. Em nove anos investigando a prisão de Kerobokan, nunca ouvi uma única história em que não houvesse dinheiro no meio", comenta ela. "Ser preso em casa ou no hotel é bem mais barato do que ser pego tentando entrar com drogas no país. Nos últimos dez anos, os preços subiram. Hoje em dia, US$ 10 mil é o mínimo de propina para se safar de um flagrante."
Snowing in Bali (em tradução livre, Nevando em Bali), com previsão de lançamento no Brasil em breve pela Geração Editorial, é um thriller, daqueles com todos os requintes: drogas, sexo, corrupção, luxo, aventura, coragem, medo, desafio. Ao longo das páginas, traficantes desafiam a morte entrando com quilos de cocaína e maconha na ilha.
Glamour e fuzilamento
"A maioria são jovens que chegaram a Bali em busca do estilo de vida e começaram a vender drogas para se sustentar", diz Kathryn. "Com a ilha cheia de visitantes ávidos, o mercado interno é potente. Eles negociam a droga nas boates, nos hotéis de luxo e depois vão surfar com os bolsos recheados de dólares. No meu livro, um dos traficantes explicita detalhes de suas orgias com modelos e atrizes que encontra nos restaurantes chiques da ilha. O problema é que o glamour do bad guy pode acabar em frente ao pelotão de fuzilamento."
Kathryn passou quase uma década em Bali, entrevistando os patrões da cocaína e os condenados à morte. Em 2004, ela largou o emprego de produtora do programa da TV australiana 60 minutes e se instalou na ilha. Sua missão era fazer a biografia da estudante Schapelle Corby, que foi presa no aeroporto de Denpasar com 4 quilos de maconha e condenada a 20 anos de prisão. Durante suas visitas ao presídio de Kerobokan, onde estava Corby, a jornalista descobriu o ingrediente-chave para os seus três livros: a corrupção. "Vi um bizarro mundo de violência, sexo, drogas, propinas milionárias e conheci muitos traficantes, inclusive o Marco Archer. Foi natural partir para o segundo livro, Hotel K, e, em seguida, para o Snowing", diz. "O título, Hotel K, é porque os presos que têm dinheiro vivem como reis lá dentro. Drogas, álcool e comida dos melhores restaurantes na porta da cela. Eu diria que Kerobokan é o lugar mais seguro de Bali para traficar drogas. Os guardas trabalham em parceria. É muito fácil entender: fazem em um dia o salário do mês todo."
O protagonista de Snowing in Bali é o brasileiro Rafael (o nome foi trocado para preservar sua identidade), que nunca foi condenado e hoje trabalha como professor de surf na ilha. Entre 1990 e 2000, ele fez fortuna traficando cocaína para a Indonésia dentro de tubos de alumínio usados em asas-deltas. No auge da carreira, não tinha pudor de ostentar. Construiu uma mansão à beira-mar em Canggu, praia de Denpasar, usava relógios Rolex, distribuía propinas e dava festas nababescas, regadas ao melhor pó colombiano. Rafael chegou a ser alvo de uma investigação. Vendo amigos caírem nas mãos da polícia, resolveu que era hora de parar.
Disfarce perfeito
"Os brasileiros têm vantagens sobre outras nacionalidades, embora o tráfico de drogas em Bali seja comandado por gente de vários lugares. São viajantes e se misturam facilmente aos turistas. Ao contrário dos peruanos, por exemplo, que encontram mais dificuldade em se camuflar", comenta Kathryn. "Outra vantagem é a proximidade com os países produtores, como Colômbia e Peru. Depois de entrar com a droga pela fronteira do Brasil, não encontravam dificuldades em fazê-la chegar na Indonésia. Seus equipamentos esportivos eram o disfarce perfeito."
Entre os personagens de Snowing in Bali está o carioca Marco Archer, morto aos 53 anos. Kathryn o entrevistou na prisão de Nusakambangan, a Alcatraz da Indonésia. "Ele cozinhou para mim. Era chef com diploma", conta a jornalista. No livro, ela descreve Archer como um sedutor, um aventureiro sem limites, em busca da morte. O instrutor de voo livre foi pego no aeroporto de Jacarta, em 2004, ao tentar entrar na Indonésia com 13 quilos de cocaína escondidos nos tubos da asa-delta, técnica que aprendeu e repetiu inúmeras vezes com o amigo Rafael.
Só que dessa vez os policiais desconfiaram e resolveram abrir os tubos. Enquanto labutavam com as ferramentas, Marco escapuliu da cena do crime andando tranquilamente, pegou um táxi até o aeroporto doméstico e embarcou para Bali. Seguiu-se uma fuga cinematográfica de 20 dias, com a polícia no seu calcanhar. Segundo Kathryn, a peripécia, que ocupou a manchete dos jornais por semanas, tirou-lhe a possibilidade de comprar a liberdade, possibilidade que cogitou até o fim.
"Marco era um cara muito divertido, otimista, sarcástico. Nunca admitiu que seria morto, conhecia os esquemas de Bali. Rodrigo (Gularte) era o oposto, quieto, triste. Levando em conta que ambos estiveram no corredor da morte por mais de dez anos e o governo indonésio nunca havia executado ocidentais, acreditei que seriam libertados", diz Kathryn. E completa: "Pena de morte é uma barbárie. A morte dessas pessoas vai diminuir o tráfico por um tempo até que as coisas voltem a ser como antes."