Joan Melé fala sobre bancos éticos e uso do dinheiro

por Rodrigo V. Cunha

Com uma longa trajetória em instituições bancárias, Joan Melé explica o que é o banco ético e defende o uso consciente da moeda

O catalão Joan Melé fez carreira em bancos tradicionais espanhóis. Ao ver muitas vidas se transformarem por heranças e falências, se perguntava sobre o melhor uso do dinheiro. Ao mesmo tempo, após a queda do Muro de Berlim e a ascensão do capitalismo, viu a escalada da globalização e uma corrida mundial para sustentar o consumismo em um processo que se tornou uma espécie de obsessão coletiva.

Por conta disso, começou a explorar temas que envolviam o uso consciente do dinheiro e, assim, chegou aos bancos éticos, instituições que se engajam na questão dos impactos socioambientais e são transparentes sobre os critérios de investimento do dinheiro aplicado pelos correntistas. Contra todas as expectativas, Melé iniciou, na Espanha, as operações do banco ético holandês Triodos Bank e conquistou o mercado ao aumentar o crédito e diminuir as taxas de juros em plena crise de 2008. O banco cresceu como nunca no país e ele virou um pregador do tema.

Recentemente, o espanhol criou a Rede Dinheiro e Consciência no Brasil, que estimula o uso consciente do dinheiro em diversas frentes, e está explorando a criação de um banco ético por aqui. "Gosto de falar em banco ético por ser mais provocativo e chato para os outros bancos, porque parece que estou dizendo que eles não são éticos", diz.

“Gosto de falar em banco ético por ser mais provocativo e chato para os outros bancos. Parece que estou dizendo que eles não são éticos”
Joan Melé

Em meio a filosofias e questionamentos sobre a vida, Melé adora provocar pensamentos. O que faz bem: já deu mais de duas mil palestras sobre o tema e, segundo ele, nunca questionaram a sensatez de suas ideias.

Trip. Como começou sua trajetória em bancos?
Joan Melé. Lembro que, aos 18 anos, a última coisa que eu queria era trabalhar em bancos. Mas fiz um teste para posições de trabalho na Espanha e acabei conseguindo emprego no Caja de Ahorros da Catalunha, um banco importante. Achei que seria algo provisório e depois eu viraria professor. Mas descobri que eu gostava muito de me relacionar e curti aquele trabalho de interagir com pessoas por meio do dinheiro. Vi gente que não tinha nada e, de repente, recebeu uma herança. E gente que tinha muito e perdeu tudo. Nesse processo, surge o melhor e o pior das pessoas. Esse foi meu campo de aprendizado. 

“Vi gente que não tinha nada e ganhou uma herança. E gente que tinha muito e perdeu tudo. Nesse processo, surge o melhor e o pior das pessoas”
Joan Melé

E o que te desiludiu no sistema tradicional? Eu tinha muito orgulho de trabalhar nesse banco. Desde o primeiro dia, fui treinado para ser útil para as pessoas, e de maneira honesta. A partir de 1989, com a queda do muro de Berlim, houve uma aceleração da globalização e de uma loucura coletiva. Foi o nascimento de uma obsessão de crescer e ganhar mais dinheiro. Comecei a ver muita gente chegar do mercado com uma visão especulativa e que nos afastou da economia real, humana, ligada às necessidades das pessoas.

A globalização é um problema? Não. O problema é que globalizamos os processos econômicos, mas não a consciência. Não é possível terceirizar o trabalho para uma empresa em países como Bangladesh, Índia ou China e não prestar atenção nas questões dos direitos humanos. Fazer isso é globalizar a exploração humana. No banco, estavam pedindo para enganarmos os clientes, incentivando-os a investirem em produtos especulativos que nem sequer entendíamos. Por sorte, por meio de uma amiga, conheci os bancos éticos, como o Triodos Bank (Holanda), o Banco Popollare Etica (Itália) e o GLS, desenhado por estudantes na Alemanha, que existe até hoje. Logo depois, conheci o Grameen Bank, de Muhammad Yunus.  

Como você foi parar no Triodos Bank? Houve o primeiro Congresso Mundial de Bancos Éticos em Barcelona, em 2000. Entrei em contato com os organizadores e criamos uma parceria para disseminar o propósito de criar um banco ético na Espanha. Então, comecei a palestrar sobre o assunto. Em 2004, o Triodos abriu uma filial no país e, no ano seguinte, resolveram criar uma rede de varejo e me pediram para liderar o processo. Eu estava pregando sobre o tema e, de uma hora para outra, me pedem para fazer acontecer. Foi quando experimentei a sensação de medo profundamente. E, logo em seguida, outra que me pareceu muito pior: a de conforto. Eu estava próximo da aposentadoria e iria viver confortavelmente. Teria que abrir mão de tudo isso para empreender aos 56 anos. Meus amigos me diziam para não fazer e também falavam que seria impossível criar um banco ético na Espanha. Fiquei acordado a noite inteira pensando que aquela era a chance de eu praticar meus princípios. Às 4h da manhã, tomei a decisão e aceitei o desafio.

Quando o banco começou a operar? O escritório abriu em 2006. Quando falei da estratégia de lançamento — rodar por Barcelona, outras cidades da Catalunha e Ilhas Baleares dando palestras —, meu chefe disse que era uma maluquice. Então, perguntei se eu tinha mesmo a carta-branca como haviam me falado e pedi para confiarem em mim. Assim, praticamente todos os dias, depois de fechar a filial, eu ia dar palestra sobre banco ético em centros culturais, associações religiosas, empresas, congregações, universidades. Em oito anos, dei mais de 2 mil palestras. Os clientes foram chegando, até que, em 2008, veio a crise financeira mundial. Pegou a Espanha em cheio, apenas dois anos depois de abrirmos a operação. De uma hora para outra, os bancos cortaram as linhas de crédito e aumentaram os juros. Nós fizemos o contrário! Aumentamos as linhas de crédito e baixamos os juros. Neste momento, nos descobriram. Chegava a ter fila fora da agência de gente querendo abrir conta no banco! 

O que as pessoas buscam em um banco como o Triodos? As pessoas estão cansadas dos bancos e suas mentiras e procuram cada vez mais autenticidade e significado. Acredito também que grande parte do sucesso que tivemos deve-se à transparência. A chave de um banco ético são dois pilares: definir muito bem os critérios de investimentos e a transparência total nesses critérios. Não investimos em energia nuclear, por exemplo, e investimos somente em agricultura biodinâmica e orgânica. A agricultura com pesticidas e fertilizantes químicos está destruindo a Terra. Isso não é bom para o nosso futuro, não queremos alimentar essa prática. A transparência é fundamental também porque o dinheiro investido é dos clientes. Então, é importante dizer como ele está sendo aplicado. Você busca saber sobre suas relações, sobre o lugar onde vai morar. Por que permitiria a um banco fazer coisas com seu dinheiro que você nunca faria? 

“Você busca saber sobre suas relações, o lugar onde vai morar. Por que deixaria um banco fazer coisas com seu dinheiro que você nunca faria?”
Joan Melé

Há quem diga que a postura de um banco ético só é possível em um banco pequeno. Você concorda? Não somos pequenos na Europa. Temos 700 mil clientes. Mas também não queremos ser o maior banco ou captar todos os clientes do mundo. Queremos mostrar que você pode fazer um banco de forma ética, respeitando as pessoas e o planeta. Também queremos causar uma mudança em outros bancos. Isso não tem a ver com tamanho. Olhe para as células: quando elas crescem demais, desproporcionalmente, temos o câncer. É uma disfunção que leva à destruição. É o que está acontecendo hoje no mundo. Então, pode falar que é um banco pequeno. Qual o problema? Criamos uma aliança de bancos éticos com mais 50 instituições e mais de 40 milhões de clientes pelo mundo.

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No Brasil tem algum banco ético? Não. Estamos criando a Rede Dinheiro e Consciência desde 2018. E temos um projeto de banco ético no país. No momento, estou ajudando a desenvolver projetos como esse em outros países da América Latina, como Argentina, Chile, Colômbia e México.

Por que é necessário falar em bancos éticos? Estamos falando de bancos éticos como algo estranho ou raro. Eu diria que é um banco normal, no qual o senso comum é que as pessoas e o planeta são mais importantes que o dinheiro. Dizemos para não vender uma coisa a um cliente se você mesmo não comprar isso. É um processo de tomada de consciência mais amplo. Orientamos os clientes que, por exemplo, ao comprar uma camisa, pergunte quem fabricou, em qual país e sob quais condições. Porque dependendo de onde se compra, podemos favorecer a exploração de pessoas. Você pode decidir que com seu dinheiro não vão fazer. E isso é muito forte. Temos que colocar consciência nessas decisões e precisamos nos dar conta que o barato não existe. Por trás, há um preço oculto que alguém vai pagar muito caro, com sua vida ou com a contaminação do meio ambiente. 

“Eu diria que [o banco ético] é um banco normal, no qual o senso comum é que as pessoas e o planeta são mais importantes que o dinheiro”
Joan Melé

Aí vem aquela velha questão de que nem todos podem comprar de maneira consciente, porque é mais caro. Qual sua opinião sobre isso? É um problema de consciência. Começamos pela América Latina e vamos para os Estados Unidos, para a China e para onde mais precisarmos ir, porque temos que mudar o padrão. Se estou comprando uma roupa que explora pessoas, estou explorando pessoas também. O mesmo para comidas transgênicas, que estão destruindo os ecossistemas da Argentina e do Brasil, por exemplo. As pessoas dizem que não vão poder comer porque os orgânicos são mais caros. Então pare de comprar besteiras que você não precisa. Esse é outro problema. Gastamos dinheiro com coisas que não são necessárias e não queremos gastar com coisas importantes. 

De onde vem seu interesse nesses temas? Desde pequeno, ouvia os contos da minha avó sobre famílias pobres que eram ajudadas por outras famílias. Aos 14 anos, eu fazia trabalho de voluntariado. Quando adulto, não sabia muito bem o que fazer com esse impulso, mas sempre me preocupei com as questões sociais. E, agora, as ambientais —  é terrível ver como estamos destruindo nosso próprio planeta. Minha vida é um caminho de espiritualidade e de reflexão interna que me faz descobrir cada vez mais quem sou, junto com meu potencial e meus medos. E isso me dá força para seguir adiante. Do contrário, vivemos como robôs: nos levantamos para ganhar dinheiro para poder descansar e ficar reclamando da vida. E assim vamos até morrer. Nunca paramos para perguntar qual o sentido disso tudo. Ou dizemos por aí que a vida é uma luta pela sobrevivência.  Mas... e quanto a viver como seres humanos? Ora, em nossa história como humanidade, criamos sinfonias, catedrais, poesias, pinturas, arte. Agora, parece que estamos doentes, obsessivos por dinheiro e crescimento. Temos que colocar consciência no uso do dinheiro. Não podemos ser escravos dele. Precisamos nos libertar.

Créditos

Imagem principal: Vitoria Bas

Rodrigo Cunha é autor deste texto, parte de uma série feita a partir de entrevistas que realizou para seu projeto autoral Humanos de negócios, livro que lançará em 2019. www.humanosdenegocios.com.br

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