Gosto muito de você, leãozinho

por Ricardo Calil
Trip #202

Aos 91 anos, Orlando Orfei relembra o tempo em que foi um dos maiores domadores do mundo

Ao longo de 60 anos atuando como domador de animais, Orlando Orfei parou no hospital 63 vezes por acidentes de trabalho. Em certa ocasião, levou 167 pontos depois de um ataque quase fatal de uma leoa no cio, no meio de uma apresentação em Mogi das Cruzes, em 1978. De outra feita, perdeu parte do dedo anelar direito, ao se encostar desavisadamente na grade de outra leoa. Além de felinos, ele domou elefantes, ursos e as incontroláveis hienas, que têm a mordida mais forte entre os carnívoros. Mas aos 91 anos, vítima do mal de Alzheimer, Orfei tem dificuldades para adestrar algo aparentemente mais inofensivo: suas memórias. Num momento, ele se recorda de nomes e detalhes que outros mais jovens à sua volta não conseguem lembrar. No seguinte, pergunta: “Hoje é dia da estreia? Já mandaram a propaganda para os jornais?”, sem se dar conta de que seu circo foi fechado de vez há três anos, depois que os animais foram proibidos em circo em nove estados e mais de 50 municípios, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre.


Mas Orfei – que vive em uma casa espaçosa, mas sem luxos, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense – conta com uma rede de apoio para que suas lembranças não se apaguem (e, com elas, boa parte das memórias do circo tradicional no Brasil): sua mulher, Herta, seus seis filhos de três casamentos e o amigo David Avelar, português que trabalhou em seu circo por 20 anos e hoje atua como assessor da família. Graças a eles, o legado de Orfei se espalhou por vários cantos: no começo deste ano, o artista foi tema do desfile da escola de samba Palmeirinha, no carnaval de Nova Iguaçu; em setembro, ele será o principal homenageado do Encontro de Artes Cênicas da Baixada Fluminense; e o diretor Sylas Andrade, da produtora Câmera 2, já está colhendo depoimentos e imagens de arquivo para o documentário Orlando Orfei, o Homem do Circo Vivo. Além disso, a família aguarda a aprovação na Lei Rouanet para captar recursos que permitam reativar o Circo Orfei e criar um museu dedicado a sua história. Mas, para a tristeza de seu criador, sem nenhum animal desta vez.

PSICÓLOGO DE ANIMAIS

A história da família Orfei com o circo começa em 1820 na Itália, quando o padre Paolo Orfei larga a batina por amor a uma saltimbanca e se junta à trupe dela. Orlando nasce um século depois, sob a lona do circo familiar. Aos 5 anos, estreia no picadeiro como palhaço. Aos 16, já se apresentava como equilibrista, malabarista e mágico. Quando uma espectadora pergunta o que aconteceria se ele espirasse na cordabamba, ele desiste de ser equilibrista na hora.

Ao tornar-se dono de circo, Orlando cria inovações que o transformam em um dos grandes nomes do meio na Itália, como substituir as perigosas lonas de algodão pelas de plástico e criar um sistema de calefação para as temporadas de inverno, adaptando caldeiras a diesel e injetando ar quente dentro da lona. Mas foi como domador de animais que ele se tornaria uma lenda do circo no mundo todo.

Certo dia, cansado das exigências de um domador alemão, ele decide enfrentar as feras e percebe ter uma conexão especial com animais. Seu filho Mario Orfei explica o diferencial de Orlando: “Os outros domadores trabalhavam com a ferocidade. Se um leão cometia um erro, eles estalavam o chicote, e o animal respondia rugindo. Já meu pai brincava com as manias dos bichos, incorporava o erro ao espetáculo. Por exemplo, havia uma leoa que, em vez de subir na banqueta, preferia repousar a cabeça sobre ela, e papai fingia que colocava o bicho de castigo. Era como se fossem atores contracenando”. Orfei também fazia a barba com a ponta do rabo de um, abraçava outro, deitava com um terceiro. E geralmente entrava na jaula de mãos abanando, sem cadeiras ou chicotes. Ele diz que ganhava os bichos só na conversa, sem violência. “Meu pai era antes um psicólogo de animais do que um domador”, diz Mario.

Nos anos 50 e 60, Orfei era uma celebridade na Itália. O papa João XXIII o recebeu cinco vezes e declarou em uma delas: “Orlando, seu trabalho é um apostolado de paz, continua a levar a alegria às famílias cristãs” – frase impensável nos dias de hoje para se referir a um domador de animais. Em 1968, Orfei não hesitou em trocar seu velho amor, a Itália, por uma nova paixão: o Brasil. Ele veio para apresentações no Festival Mundial do Circo e decidiu que não sairia mais daqui. Em pouco tempo, o Circo Orfei tornou-se um dos maiores do Brasil – ao lado de Garcia, Tihany e Bartolo.

Em 1972, Orlando abriu o Tivoli Park na lagoa Rodrigo de Freitas, coração da zona sul do Rio, um parque de diversões que marcou a infância e a adolescência de duas gerações de cariocas – embora poucos hoje saibam que o nome Orfei estava por trás do empreendimento.

Os anos 70 e 80 foram de fartura para a família Orfei. Mas as décadas seguintes reservaram dois grandes baques para o clã. Depois de uma acusação de estupro no Castelo das Bruxas e de um acidente na Gaiola das Loucas, o Tivoli Park foi fechado em 1995 por ordem do então prefeito César Maia. A prefeitura alegou problemas fiscais, mas os Orfei até hoje acreditam que as motivações foram políticas, ligadas à especulação imobiliária na Lagoa e à inauguração de parques concorrentes. Em 2005, veio o baque definitivo: os animais começaram a ser proibidos em circos por um número crescente de estados e municípios. Sem poder contar com sua maior atração nos principais mercados do país, o Circo Orfei cambaleou por três anos, até fechar em 2008 – mesmo destino da maioria dos circos tradicionais do país.

COLEGAS DE TRABALHO

Ainda hoje, a família de Orlando Orfei se mostra revoltada com a proibição. “É uma injustiça e uma hipocrisia essa proibição em um país que permite rodeio, que faz vista grossa para a farra do boi. É uma decisão discriminatória e antidemocrática”, afirma, exaltado, Mario Orfei. Segundo ele, os grandes circos pagaram o preço pelos pequenos. “Havia circos mambembes sem estrutura para cuidar de seus animais. Mas bastava ter fiscalização para puni-los. Só que não dá para convencer os ambientalistas de que nós do circo não somos criminosos, assim como não adiantava dizer aos nazistas que os judeus eram seres humanos.”

Para Avelar, assessor da família, a proibição foi especialmente dura para Orfei porque ele é um tradicionalista. “Orlando gosta de usar a expressão ‘circo, circo’. Para ele, circo é animais, palhaços e um picadeiro de 12 m. Ele não vê graça em circos modernos como o Cirque du Soleil.” Além disso, Orfei sempre se orgulhou de tratar bem seus animais. “Ele os chamava de companheiros de trabalho. Podia faltar comida para a gente, nunca para os animais.”

Mas o discurso da família Orfei não convence entidades como a seção brasileira da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA). “Por mais que alguns donos e domadores tenham afeto por seus animais, a verdade é que nenhum circo, grande ou pequeno, consegue garantir o bem-estar dos bichos, prover o que eles teriam em seu habitat. Pode ter certeza de que os animais estão em melhores condições hoje, em zoológicos e santuários para onde foram enviados pelo Ibama”, afirma a veterinária Ana Nira, consultora da WSPA em Brasília. Engajada na campanha “Circo legal não tem animal”, a entidade defende que a proibição passe a valer para todo o país, com a aprovação de uma lei federal que está pronta para ser votada pelo plenário da Câmara.

Depois que seu circo foi fechado, Orfei doou oito leões e dois elefantes para tratadores amigos e bancou por um bom tempo a comida dos animais. Bom de marketing, ele costumava levar Sofia, sua leoa preferida, para qualquer canto em seus tempos de glória, fosse uma praia da Riviera francesa ou a cantina Trastevere, na alameda Santos, em São Paulo, para espanto de frequentadores como Jô Soares. Hoje, o único animal que o acompanha em sua casa em Nova Iguaçu é Lobo, um pastor-alemão.

Para o diretor Sylas Andrade, que está realizando o documentário sobre Orfei, o italiano foi não apenas um dos maiores domadores do mundo, como também um dos mais longevos. “Em geral um domador muda de profissão quando envelhece, porque ela é muito arriscada. Mas Orfei continuou mesmo depois dos acidentes, mesmo depois de um derrame. E acho que continuaria até hoje, se não fosse pela proibição dos circos e pelo mal de Alzheimer.” Segundo cálculos de Mario, a última vez que Orfei domou um animal foi em 2001, quando já tinha 81 anos. Mas ele nunca planejou um espetáculo de despedida. “Meu pai costumava dizer que preferia morrer na boca de um leão a morrer de cálculo no fígado. Ele sempre achou que ia morrer no picadeiro.”

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