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Escultura na água

por Caio Ferretti
Trip #194

Para o shaper Johnny Rice, uma prancha feita por mãos humanas é uma obra de arte

Para o shaper Johnny Rice, o surf é uma experiência espiritual e uma prancha feita por mãos humanas é uma obra de arte. Um dos últimos representantes do trabalho artesanal em sua profissão, ele ajudou a criar a cultura do esporte nos Estados Unidos e no Brasil, onde passou uma temporada no Guarujá dos anos 70

“Uma prancha feita por uma máquina é só uma prancha. Quando é feita por mãos humanas é uma obra de arte”, diz Mr. Johnny Rice, com o currículo de quem não solta apenas uma frase de efeito. Não à toa, muitas das pranchas que ele desenhou e lapidou nas últimas cinco décadas hoje passam longe do mar. Repousam em paredes de colecionadores como verdadeiras relíquias. E são apenas um dos motivos que vão levar Johnny Rice a um posto no rol da fama dos shapers, em uma cerimônia no sul da Califórnia, ainda este ano.

Rice tem quase 60 anos de surf, e pelo menos 50 deles como shaper. Da madeira balsa à hoje onipresente fibra de vidro, sua carreira se confunde com a ascensão do esporte – que foi de um nicho praiano no Havaí e na Califórnia ao mainstream mundial. A mesma carreira que, por voltas do destino, calhou de ser parte da expansão da cultura de surf no Brasil durante os anos 70. Numa época em que raríssimos gatos-pingados se aventuravam nas ondas do litoral paulista, Johnny abriu uma surf shop e trouxe uma nova técnica de shapes para o amador mercado brasileiro.

Saudosista, desses que repetem várias vezes como a vida era melhor antigamente, Johnny guarda bem na memória como o surf começou a fazer parte de sua rotina. Ele ainda era um garoto de 11 anos quando conseguiu comprar sua primeira prancha. Era 1949 e, naquele tempo, surfava-se em cima de tábuas de madeira. Gigantes pesados e desajeitados. A de Johnny, no caso, pesava perto dos 60 kg, media 14 pés. Bem mais pesada, e bem mais alta, do que ele próprio na pré-adolescência. Mas foi em cima dessa barca que ele pegou as primeiras ondas em Santa Cruz, na Califórnia, onde nasceu. Onde descobriu o que faria da vida.

"O lado bom de estar na guarda costeira é que eu sabia onde quebravam as melhores ondas da costa"

Foi mais do que natural que o surf ganhasse ares de profissão para Johnny. Em 1954 , quando mudou-se para Venice Beach, em Los Angeles, com a família, uma prancha quebrada o levou ao encontro de Dale Velzy. Hoje uma lenda do surf californiano, Velzy já era um shaper respeitado na época. “Eu o conheci quando ele consertou minha prancha. Pouco tempo depois comecei a trabalhar em sua loja, limpando e mantendo as coisas organizadas”, lembra Johnny. Assim, observando, ele começou a entender os traquejos de se fazer uma prancha. Um trabalho de marcenaria na época. Até que, certo dia, Velzy decidiu que era hora de Johnny botar a mão na madeira e começar a riscar uns shapes. “Ele foi meu professor. Eu poderia passar dias contando histórias de como ele foi uma pessoa especial para mim.”

Foram quatro anos vivendo em Venice – os últimos de Johnny junto de sua família. Seu pai era alcoólatra, descendente de índios norte-americanos, e os dois nunca tiveram uma relação muito próxima. Se por um lado Johnny é saudosista ao falar de sua juventude no surf, por outro ele fecha a cara quando o assunto são os costumes indígenas em sua infância. “Naquele tempo a gente não falava sobre ter o sangue índio em público. Tínhamos vergonha, e nunca vou saber por que... Mas fui um sundancer [participante de um ritual anual dos índios americanos] quando era criança. Era terrível, quatro dias seguidos rezando, dançando... e nada de água ou comida.”

Longe da família, dos rituais e de Venice Beach, arrumou as malas e foi para a terra prometida às almas surfistas como a dele: Havaí. Lá ele conseguiu o trabalho dos sonhos: ser um dos beach boys de Waikiki. Johnny explica: “Era maravilhoso. Eu ajudava os turistas, limpava as praias, levava as pessoas de canoa até o outside e as ensinava a surfar”, conta. “Não era qualquer um que podia exercer essa função, mas os locais da ilha gostaram de mim e me incluíram nesse grupo. Trabalhar para a associação dos beach boys de Waikiki me rendeu muitas horas de surf.” A fase boa durou dois anos, 1958 e 1959, mas Johnny não teve a mesma sorte quando deixou as ilhas e voltou para o continente. Dessa vez ele não conseguiu um emprego. Resolveu o problema se alistando na guarda costeira dos Estados Unidos no outro extremo do país, na costa leste.

Por lá passou toda a década de 60, sem nunca parar de desenhar umas pranchas. “Toda vez que voltávamos para o porto eu encontrava uma surf shop para shapear. E também nunca deixei de surfar. O lado bom de estar na guarda costeira é que eu sabia onde quebravam as melhores ondas da costa.” Mas Johnny teria que se mudar mais uma vez no início dos anos 70.


Um lugar chamado Guarujá
Há quem diga que foram problemas com o fisco americano. Outros garantem que Johnny era testemunha-chave em uma investigação federal contra o tráfico de drogas na Flórida e teria que depor contra a máfia que atuava por lá naqueles tempos. Mas Johnny desconversa. Prefere dizer que foi outro o motivo que o trouxe ao Brasil em 1972, com mulher e três filhos. “Alguns amigos já haviam me falado de um lugar chamado Guarujá. E eu sempre tive vontade de conhecer o Brasil. Então fiz as malas e vim com a minha família.” Desembarcou em uma cidade que estava começando a criar cultura de surf. E tratou logo de aproveitar o momento para ganhar dinheiro fazendo o que ele melhor sabia: pranchas.

"Alguns amigos já haviam me falado de um lugar chamado Guarujá. Então fiz as malas e vim com a minha família"

Em uma rua de terra na praia do Tombo, Johnny abriu uma oficina onde fazia e vendia suas pranchas. Era um espaço pequeno, paredes de tijolos e concreto sem nenhum revestimento. E uma placa, escrita à mão, que avisava os futuros clientes: “surfboards”. Naquele momento, quem abastecia o mercado de pranchas no Guarujá era a dupla Mark Jackola e Thyola, com as clássicas Lightning Bolt. “Havia uma concorrência entre o Mark e o Johnny”, lembra Thyola. “Às vezes eles saíam para beber e acabavam brigando. Eu me lembro de algumas vezes o Jackola chegar à fábrica reclamando do Rice.” Thyola não se importava. Chegou até a laminar algumas pranchas shapeadas por Johnny.

E não foi o único a trabalhar ao lado dele. Paulo Matos, local do Guarujá que começou a surfar naquela época e que se tornaria o primeiro campeão brasileiro oficial de surf, conseguiu comprar sua primeira prancha fazendo exatamente o mesmo serviço que Johnny prestava para seu professor Dale Velzy, em Venice. “Eu tinha uns 12 anos quando trabalhei na oficina dele. Comecei limpando a poeira da sala de shapear e depois aprendi a consertar pranchas, riscar uns shapes”, conta. “Ele trouxe modelos novos de borda, de largura... Lembro que a gente chamava a prancha de bananinha, porque era bem grossa na lateral”, lembra Paulo, que completa sobre os Rice: “Eles ficaram muito famosos no Guarujá por terem vindo de fora. E também porque o filho dele, Dominic, arrebentava no surf. Ficava todo mundo na praia assistindo a ele no mar”.

Durou quase seis anos a passagem de Johnny pelo Brasil. Algumas das pranchas que ele fez agora ocupam paredes de colecionadores

Durou quase seis anos a passagem de Johnny pelo Brasil. Quando a “não confirmada” poeira baixou nos EUA, ele voltou à Califórnia e vive tranquilo, até hoje, em Santa Cruz. Mas tem suas ressalvas quanto ao presente. Monossilábico por quase toda a entrevista, o escultor de shapes reflete sobre o surf e o mundo... “Todos estão ríspidos e raivosos hoje. Eu não entendo esse sentimento, principalmente no surf. Para mim é, sobretudo, uma experiência espiritual”, diz em sua casa, onde vive a poucos metros do mar em um dos melhores picos de surf do mundo. O mesmo lugar onde começou e onde não parou de shapear, mesmo com os cabelos embranquecidos pela parafina do tempo. “Nem penso em parar”, diz enquanto alisa mais uma obra que irá ao mar e, quem sabe, para uma parede de colecionador.

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