Documentário ”Martírio”, de Vincent Carelli, mostra as origens da disputa por terras entre os índios e o agronegócio no Mato Grosso do Sul
Rodeados por fazendas do agronegócio no Mato Grosso do Sul, índios Guarani Kaiowá vivem em acampamentos que se assemelham a favelas, registram altos índices de suicídio e são assassinados por pistoleiros. Em discurso no Congresso, a senadora Kátia Abreu – uma das principais representantes da bancada ruralista – afirma que, após enfrentar o MST e o Código Florestal, o agronegócio tem como atual adversário a “questão indígena”. Fazendeiros veem os índios como invasores de suas propriedades; já os índios reivindicam o direito de retornar às terras expropriadas de seus antepassados.
Como chegamos a essa situação dramática é o que o cineasta e indigenista Vincent Carelli, 63 anos, busca responder em seu novo documentário, Martírio, codirigido por Ernesto de Carvalho e Tita, que estreia no dia 13 de abril nos cinemas. O longa dá um mergulho no passado, da Guerra do Paraguai (1864-1870) aos dias de hoje, para investigar as origens da luta dos Guarani Kaiowá pela retomada de suas terras. “É a história do Brasil da perspectiva dos índios”, explica Carelli, que levou o prêmio do público de melhor documentário brasileiro na 40ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em 2016. O filme é o segundo de uma trilogia que começou com Corumbiara (2009), sobre o massacre indígena em Rondônia, e termina com Adeus, capitão (em produção), sobre a saga de um povo no sul do Pará. De Recife, onde mora, Carelli falou à Trip.
Trip. De quem é a responsabilidade por essa situação trágica dos Guarani Kaiowá?
Vincent Carelli - A grande responsabilidade é do governo. Foram ações do Estado que levaram a essa expropriação das terras indígenas. Quem arrendou e depois loteou essas áreas, quem se omitiu no reconhecimento dos territórios dos índios foi o Estado ao longo da história recente. O único jeito de virar esse jogo é o Estado brasileiro se declarar culpado, como fez o Canadá, que pediu perdão aos índios. Se o Estado reconhece essa responsabilidade, isso dá uma guinada nos processos judiciais relacionados a essas disputas e o resultado é a demarcação das terras indígenas.
“Aqui não é a Síria, não é possível esses homicídios a bala em pleno século 21! ”
Vincent Carelli, cineasta e indigenista
Em 2012, quando surgiu a campanha “Somos todos Guarani Kaiowá”, de apoio a uma aldeia ameaçada de despejo por ordem judicial, muita gente não entendeu o significado daqueles sobrenomes no Facebook. Falta informação sobre a situação indígena no Brasil? Sem dúvida porque a mídia hegemônica não fala de índio, virou um tema tabu. É algo que circula nas redes sociais, ou melhor, circula na minha rede social, porque fica restrito a uma bolha. Tudo isso me motivou a fazer Martírio: a necessidade de esclarecer esse drama. Aqui não é a Síria, não é possível esses homicídios a bala em pleno século 21! Os índios não são um bando de malucos que resolveram invadir fazendas. Eles estão indo para lugares muito específicos, que eles conhecem, onde os antepassados moraram e estão enterrados. Tudo tem uma razão de ser. O filme se propõe a esclarecer esse equívoco.
Como garantir a continuidade da cultura dos Guarani Kaiowá e, ao mesmo tempo, permitir o desenvolvimento do agronegócio, que tem papel fundamental na economia brasileira? É um falso problema porque tem lugar para os índios e tem lugar para o agronegócio. Uma coisa não impede a outra. Os índios não estão pedindo nenhum absurdo.
Desde 1986, você dirige o projeto Vídeo nas Aldeias, de formação de cineastas indígenas. Qual a importância dele? É algo estratégico porque, numa sociedade da informação como a nossa, uma minoria étnica só sobreviverá se tiver um espaço de expressão nacional. Além de serem minoria, os índios muitas vezes habitam áreas remotas. É importante para o registro da memória e do patrimônio cultural deles e também para sua visibilidade e seu reconhecimento nacional. É um outro olhar, que enriquece o Brasil.
“Os índios não são um bando de malucos que resolveram invadir fazendas. Eles estão indo para lugares onde os antepassados estão enterrados”
Vincent Carelli
Como será o filme, Adeus, capitão, que vai fechar a trilogia? É uma reflexão sobre como o capitalismo é um tsunami numa sociedade igualitária como a indígena. Fala sobre a saga de um povo no sul do Pará, perto de Marabá, que quase foi extinto no final da década de 50 e depois renasce. É transferido para a área de um belíssimo castanhal perto de Marabá. Grandes projetos passam pela reserva – como a linha de transmissão do Tucuruí e a ferrovia de Carajás – e acabam destruindo o castanhal, que era a fonte de renda deles. Nessa época, eu e outros indigenistas ajudamos a processar as companhias e a conseguir indenização. Mas esse dinheiro também criou problemas. Os índios abandonaram a agricultura de subsistência, o que é uma tragédia na área da saúde, e se envolveram com agiotas.
Leia mais: Perfil da fotógrafa Claudia Andujar e sua luta pelos ianomami
Quais são os casos bem-sucedidos de tribos indígenas que tiveram suas terras demarcadas? Desde que o Estado garanta um território, o resto está nas mãos dos índios, eles têm que achar a solução deles. Em sociedades pequenas, um líder com visão de futuro e de resistência cultural faz a diferença. Existem vários casos bem-sucedidos. Os Ashaninka, no Acre, têm um projeto exemplar de manejo florestal e de fauna. Os Kisêdjê, no Parque do Xingu, é um povo extremamente articulado, que acompanha na internet o repasse das verbas dos ministérios da Saúde e da Educação para os municípios. Foram contatados pelos irmãos Villas-Bôas fora do Parque do Xingu, levados para morar dentro do parque e depois fizeram exatamente o que os Guarani Kaiowá tentam fazer hoje. Eles reconquistaram as terras deles, expulsando as fazendas e obrigando o Estado a reconhecer o erro. Hoje têm uma área anexa ao Xingu.
“O novo ministro da Justiça, Oscar Serraglio, faz parte da bancada ruralista. Então não dá para ser otimista em relação a esse governo”
Vincent Carelli
Como você vê o governo Temer em relação à questão indígena? O novo ministro da Justiça [à qual a Funai, Fundação Nacional do Índio, é subordinada], Oscar Serraglio, faz parte da bancada ruralista do Congresso e é o relator da PEC 215 [Proposta de Emenda Constitucional que transfere a delimitação das terras indígenas do Executivo para o Legislativo, vista como prejudicial aos índios]. Então não dá para ser otimista em relação a esse governo. Agora, uma questão tão grave quanto a PEC é o golpe jurídico que o Supremo Tribunal Federal deu ao estabelecer o chamado marco temporal. Qual é a posição do STF? Eles estão dizendo que, no dia em que foi promulgada a Constituinte de 1988, quem estava nas suas terras terá direito a elas, e quem não estava, não terá direito. Isso corresponde a zerar a história. É o mesmo que dizer: “Olha, gente, estamos apagando o passado de vocês. Não me venham com demandas”. Isso foi o que o STF fez na interpretação do julgamento da demarcação da reserva de Raposa/Serra do Sol, em 2009, e agora já deram várias sentenças nesse sentido, virou jurisprudência. Isso é apagar a história dos índios, o que fundamenta os direitos deles. É um erro gravíssimo.
Vai lá: Martírio, de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita, a partir do dia 13/04 nos cinemas
Créditos
Imagem principal: Divulgação