A vida amarela de Emicida

Em seu novo disco, AmarElo, Emicida une Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho e até uma banda do Japão para falar de algo universal: o amor

por Dandara Fonseca em

"Amar é a forma mais revolucionária e instantânea de conectar as pessoas." É assim que Emicida traduz a ideia presente em seu novo álbum, AmarElo. As rimas mais intensas e agressivas, presentes em outros trabalhos, dão lugar a palavras que trazem vivências do cotidiano e a sensação de acolhimento, como "Triunfo hoje pra mim é o azul no boletim | Uma boa promoção de fraldas nessas drogarias". "Eu acho que existem muitas pessoas maravilhosas com discursos combativos e eu não quero congestionar essa linha de raciocínio. Elas estão fazendo uma parada incrível e eu posso colaborar de uma outra maneira", explica. 

Crédito: Julia Rodrigues/Divulgação

Além de buscar referências como Wilson das Neves e Chico Buarque, uma das principais características do álbum são as participações. Durante as onze faixas, estão presentes vozes conhecidas e consagradas, como Zeca Pagodinho, Fernanda Montenegro e Dona Onete, além de nomes em ascensão, como MC Thaa, Larissa Luz e até mesmo um grupo japonês, o Tokyo Ska Paradise Orchestra. "Eu quis muito construir um time bonito de pessoas que têm, na sua existência, a força para inspirar o mundo", diz. 

O show de lançamento do disco rola em duas sessões no dia 27 de novembro e marca uma das raríssimas passagens do rap no Theatro Municipal de São Paulo. No papo com a Trip, ele conta mais sobre o trabalho e seus encontros, tanto internos quanto externos.

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Revista Trip. Como foi o processo de criação do álbum?

Emicida. Foram muitas idas e vindas a respeito do que seria o projeto final – se seria um álbum, se seria um filme. Eu me dou a liberdade de entender qual vai ser a plataforma na reta final. Agora, uma coisa que eu não paro de fazer é criar. Vou organizando, pegando músicas. Tem alguns sons, como 9nha e Principia, que são mais antigas. Mas é porque eu acho que elas são um pouco mais complexas e eu ficava muito insatisfeito quando eu estava fazendo. Agora, cheguei e falei: nós temos alguma coisa aqui. 

“Existem muitas pessoas maravilhosas com discursos combativos e eu não quero congestionar essa linha de raciocínio”
Emicida

E de onde veio o nome "AmarElo"? No meio dessas janelas das minhas produções, eu fui produtor executivo do Inquérito, um grupo de rap aqui do interior de São Paulo. Quando estávamos no meio do processo, eles falaram que o disco se chamaria AmarElo. Eu perguntei porque e eles me apresentaram o poema do Paulo Leminski (Amar é um elo | entre o azul | e o amarelo). No fim, eles decidiram mudar o nome do disco para "Corpo e Alma" e eu amei o poema e decidi colocar o nome no meu. É isso, o nome do disco foi roubado deles. 

Crédito: Julia Rodrigues/Divulgação

O disco tem críticas sociais, mas foca em um sentimento de afeto. Falar de amor, na época em que estamos vivendo, também é uma maneira de resistir? Sim, acho que essa é a forma mais revolucionária. Amar é a forma mais revolucionária e instantânea de conectar as pessoas. Essa é a brisa de AmarElo. Minhas músicas falam muito de sonho, de esperança, de correria, de conquista. Mas elas parecem muito uma música de reação. E eu não queria partir desse ponto de reação, eu queria partir do ponto da ação, do ponto da grandiosidade onde a gente só é a gente, sem ter que responder a nada, sem ter que resistir a nada. Não que essa mentalidade se desassocie do mundo lá fora, eu não tenho essa ingenuidade, não é isso. É só para que a gente consiga restituir uma grandeza que foi roubada de nós. E que tudo isso que amedronta, que aflige, que persegue, é uma interrupção da história, mas não a nossa história. 

Então você quis se afastar de um discurso mais combativo? Eu acredito que as palavras têm um poder de cura. Uma sequência de palavras altera a química do seu corpo, te deixa feliz, te deixa bem-humorada. Foi nessa força que eu me concentrei para escrever AmarElo. Existem muitas pessoas maravilhosas com discursos combativos e eu não quero congestionar essa linha de raciocínio. Acho que elas estão fazendo uma parada incrível e eu posso colaborar de uma outra maneira.

“A música rap não é nada mais do que um fruto da história da música preta”
Emicida

O que te fez enxergar essa importância? Tem muito de espiritualidade e do convívio com os mais antigos. Eu sempre tive um respeito profundo pelos mais velhos. Poder ter conhecido e trabalhado com Lincoln Olivette e Wilson das Neves, ter encontrado com estes e outros quando eles ainda estavam aqui, me fez ter uma outra reflexão sobre tempo, sobre importância. Tudo isso me apresentou a pessoas que viveram experiências que foram muito mais traumáticas do que as minhas. E isso me fez olhar para mim mesmo e falar: "Mano, você também é muito privilegiado em uma série de coisas." 

Você já tem mais de dez anos de carreira. Quais os aprendizados que acumulou até aqui? O que eu aprendi nesses últimos anos é que a coisa mais importante é a busca. Essa parada de cheguei, de venci, de "sou foda", é divertida às vezes no rap, mas essa não é a coisa mais civilizada que eu deveria fazer. Essa é minha brisa agora, me conectar com pessoas que tinham uma busca muito valiosa e até o último momento da vida delas se concentraram em compartilhar essa busca. 

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Crédito: Julia Rodrigues/Divulgação

Você vê o uso de outros ritmos, que acontece muito no álbum, como uma saída do rap? Não tenho essa leitura. O que as pessoas costumam chamar de outros ritmos é a cultura do sample. E essa é uma das características mais bacanas do rap, que a gente pega toda essa bagagem que antecedeu a gente e trazê-la de novo para esse tempo. A música rap não é nada mais do que um fruto da história da música preta. Quando acenamos para o samba, para o raggae, para o jazz e o soul, não necessariamente nos transformamos nesses ritmos. Pelo contrário, estamos dizendo para as pessoas que a nossa base é essa também, estamos dando continuidade para essa cultura. E sempre esteve lá, se você pegar a minha primeira mixtape, por exemplo, tem o sample do Caetano Veloso, do Dorival Caymmi.

O álbum conta com muitas participações. Como foi essa experiência? Eu acho que eu sou abençoado de ter essas pessoas ao meu redor. Poder ter construído uma história, mesmo que curtinha, demonstra uma devoção à arte e faz com que pessoas de campos tão diferentes, tenham respeito pelo que eu faço. E a gente se transforma em amigos, em uma família muito bonita. 

“O que eu quero fazer agora é abrir as portas, as janelas, deixar o sol entrar e as pessoas perceberem que todos somos seres humanos”
Emicida

Como foi o primeiro contato com a Fernanda Montenegro? Apesar da grandiosidade da Dona Fernanda, ela aceitou sem nem saber direito o que era o projeto. Não é fácil isso. Significa muita coisa, eu me senti muito lisonjeado, porque é a nossa maior artista, é a nossa maior atriz. E quando ela viu ali mais ou menos a explicação, ela falou: "Vamos fazer, gosto do Emicida para caramba." Foi muito especial. 

E o Zeca Pagodinho? Quando o Seu Wilson [das Neves] veio a falecer, eu queria construir a música só com pessoas que tiveram uma relação com ele em vida ou que tiveram uma profunda devoção por ele. E o Zeca foi a última pessoa com a qual ele tomou uma cerveja. Seu Wilson nem bebia mais, mas é impossível encontrar o Zeca e não tomar uma cerveja. Eu tomei e não bebo. E aí eu chamei Os Prettos, que é uma rapaziada aqui da Zona Leste, que faz o refrão, e a banda do Japão. 

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Crédito: Julia Rodrigues/Divulgação

E como a banda do Japão, a Tokyo Ska Paradise Orchestra, entra no meio dessa história? Eles estavam vindo para o Brasil, encontraram meu nome no YouTube e disseram para a produção que gostariam de gravar comigo. E eu amo demais o Japão, então eu super topei. Com o pouco de japonês que eu aprendi indo para lá e em um dicionário de japonês, eu escrevi uma música e eles amaram. A partir disso, tivemos uma guerra de gentileza, sempre que vou para lá ou eles vem para cá tentamos agradar uns aos outros. E eles amam Wilson das Neves. Eu prometi que ia apresentá-los a ele quando eles viessem ao Brasil novamente. Aí convidei eles para participar da música. 

Na faixa "Cananéia, Iguape, Ilha Comprida", você diz "Sem risadinha. Porque aqui é o rap onde o povo é brabo. O povo é mau! Mau!". Você sente um peso vindo desse estereótipo de que o rapper tem que ser agressivo, mau? Sim, isso é muito cristalizado. É uma forma que a gente arrumou de se proteger. Faz sentido para muitas pessoas ainda, mas para mim não faz, porque não é a minha personalidade. É uma espécie de personagem que eu tive que ser. Sou uma pessoa muito mais bem humorada do que eu aparento. Falando sério sobre isso: eu acho que a gente precisa desmistificar, essa postura sisuda, que, muitas vezes, mata camadas do que a gente é de verdade. Porque na intenção de se proteger, acabamos fechando as portas. Não é isso o que eu quero fazer agora. A parada que eu quero fazer agora é abrir as portas, abrir as janelas, deixar o sol entrar e as pessoas perceberem que nós somos todos seres humanos, que choram, que sofrem, que têm esperança, que tem sonho. Essa é a parada.

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