Desfazendo a América

por Henrique Goldman
Trip #133

Enquanto filma um documentário em Massachussets, nosso colunista desconstrói a sociedade norte-americana

Vim a Worcester, Massachussets, onde estou dirigindo um documentário sobre os milagres de Audrey Santo para o canal Discovery. A Audrey se afogou em uma piscina quando tinha três anos. Está em coma há 17 anos e, segundo seus milhares de devotos no mundo inteiro, é capaz de fazer milagres. Na casa de Audrey as imagens de Jesus Cristo e da Virgem Maria secretam óleo e sangue. Dizem que ela tem o poder de curar doentes, converter infiéis e transformar destinos. Uma comissão da Igreja está considerando a sua beatificação.

Mas fica difícil acreditar em milagres andando pelas ruas desta cidade tão esquecida por Deus. Parece que um programa do governo federal promoveu a lobotomização geral da população, digitalizou os cérebros e plastificou as vísceras. A metade dos habitantes tem jeito de serial killer e é obesa como o Michael Moore, o Stupid Fat Man da esquerda americana. Na frente de muitas casas - todas nauseantemente iguais - esvoaçam bandeiras americanas em sinal de apoio ao Grande Imbecil da Casa Branca.

Estou cansado de ouvir falar mal do Bush - um líder tão burro e um alvo tão óbvio - e dos clichês antiglobalização. Por isso me surpreendo comigo mesmo. O mundo é com certeza mais pobre assim, feito de shopping centers e mais shopping centers com todas as redes vendendo todas as marcas 24 horas por dia, eternamente. Cadeias de restaurantes infinitas, porções boçais de comida plastificada. Nas centenas de canais de televisão não consigo encontrar nada que não me cause nojo. This is the land of free choice, a terra da livre escolha. Liberdade para escolher entre merda, bosta e cocô.

Só nos países da ex-União Soviética vi tamanha alienação, um mundo tão cinzento e sem esperança. Encontro uma definição perfeita para a palavra alienação no dicionário Houaiss: "Processo em que o ser humano se afasta de sua real natureza, exterior a sua dimensão espiritual, colocando-se como uma coisa, uma realidade material, um objeto da natureza".

Por que o resto do mundo usa como modelo de mundo este mundo tão feio? Talvez porque os Estados Unidos não sejam um país no mesmo sentido em que todos os outros países são países. O próprio nome, dito no plural, exprime uma diferença globalizante. E não é só porque eles são a única superpotência. É porque os Estados Unidos são o denominador comum de todos os outros países. Convivem aqui uma Europa fofinha e uma África miserável. Jardins Paulistas ao lado de Sowetos e China Towns. O resto do mundo consome a Grande América porque a Grande América já consumiu, com extrema facilidade, o resto do mundo.

Meu trabalho me trouxe até a Worcester para falar de Audrey, da glória dos homens e de Deus, de milagres redentores e do paraíso terrestre. Mas, daqui no meu quarto de hotel em Worcester, não consigo acreditar em nada disso. Só consigo ver um estacionamento vazio e a triste luz de um Kentucky Fried Chicken perdido na noite.

Créditos

Imagem principal: Ilustração Abiuro

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