De volta para o futuro?

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por Kátia Lessa
Trip #229

Um grupo cada vez maior se veste, surfa e pensa como se fazia nos anos 70

De bode com as competições e o mercado, um grupo cada vez maior se veste, surfa e pensa como se fazia nos anos 70. A maioria nem era nascida na época – mas acredita que olhar para trás é a melhor forma de fazer o surf (e a vida) ir para a frente

Um moleque de cabelos e barba mal aparados e óculos escuros redondinhos chega à Praia da Joatinga, no Rio de Janeiro, pilotando uma caminhonete F100 modelo 78. Na caçamba, duas pranchas de bordas gordas: uma monoquilha 6’6 e uma biquilha 5’9. No corpo, uma bermuda mais curta e puída, um palmo acima dos joelhos, quase um short.

Em uma primeira batida de olho, Peu Mello, 32 anos, poderia ter saído da turma de Pepê, Daniel Friedman e Ricardo Bocão, alguns dos garotos que desbravaram o Arpoador e o Píer de Ipanema no Rio de Janeiro dos anos 70. Podia ser mais um “vagabundo”, como eram tachados os frequentadores das Dunas do Barato, faixa de areia em frente ao Píer, por onde circulavam, envoltos pela marofa canábica, os músicos Caetano Veloso, Gal Costa e artistas como Hélio Oiticica e Regina Casé.

O artista plástico barbudo do Joá, porém, é parte de um grupo de freesurfers, que, em pleno 2014, resolveu olhar para trás em busca do futuro do surf. “Não me identifico com o surf de competição e não tenho interesse em manobras mirabolantes. O mundo já está acelerado demais. Usar pranchas retrô faz com que eu tenha que estar ainda mais em sintonia com o mar para que eu consiga saber exatamente onde pisar e fluir na onda”, acredita Peu.

 

"Não tenho interesse em manobras mirabolantes. O mundo já está acelerado demais", acredita Peu Mello

 

O surfista profissional Dennis Tihara, que começou no esporte na década de 90, época dominada pelas pranchas de três quilhas e por um superatleta de competição, o 11 vezes campeão mundial Kelly Slater, concorda: “A maneira como os caras surfavam nos anos 70 era mágica. Não tinha essa de entrar na água só para dar aéreo ou rabetada, eles tinham muito mais estilo, fluidez. Surfavam com amor”, diz ele, que admira surfistas atuais como os longboarders Alex Knost e Joel Tudor, mas se inspira mesmo em Gerry Lopez. “Gerry revolucionou o esporte surfando com sua famosa prancha de uma quilha do raio vermelho. Se desse para voltar no tempo era com ele que eu queria surfar”, diz Dennis.

O apreço dessa turma pela década de 70 não transparece apenas em seus modelos de pranchas e manobras aquáticas. Quando assistiu ao filme Hair, de 1979, John Magrath, 26, ficou encantado com os personagens “largados, sem destino, sem apegos”. Gostou da forma como eles se vestiam e invejou o fato de experimentarem tudo o que sentiam vontade. “Aquela bagunça dos anos 70 representava bem essa vontade de amor incondicional, de espontaneidade e de integração entre as diversas tribos. Sinto que isso está sendo esquecido. Por que não resgatar tudo isso agora?”, indaga o rapaz, que mora em Búzios e não trabalha.

Gastrônomo e ex-surfista profissional, o santista Andrew Serrano, 28, passou a surfar influenciado pelo estilo old school do pai.  “Parei de competir aos 19 anos porque não estava mais feliz com o surf nesse formato e comecei a usar umas pranchas monoquilhas e biquilhas do meu pai. Quando estou no mar com elas, posso até sentir a energia daquela época”, diz direto do Havaí, um de seus lugares preferidos para o surf clássico, assim como o norte peruano.

Além da identificação com o espírito da época, a turma não nega uma queda pela estética retrô. Além das 15 pranchas que guarda na garagem, Peu coleciona câmeras fotográficas analógicas, duas filmadoras Super-8 e 16 mm, uma máquina de escrever, carro, roupas e até malas da época. “O mais importante é a liberdade, a despretensão e a vontade de descobrir novos lugares para surfar. 
Mas sou muito fã da estética daquela década. Os caras faziam pranchas de madeira em casa. Era tudo menos industrial”, aponta.

Chloé Calmon, 19, surfa de longboard desde os 12 e, atualmente, é surfista profissional. “O surf hoje virou um mercado e não posso me dar ao luxo de viver exatamente como os caras que passavam o dia jogados no Arpoador, usando drogas e ouvindo Pink Floyd. Tenho rotina de atleta, o surf é meu emprego.” Ela conta, no entanto, que, enquanto a maioria dos surfistas tende a perseguir as manobras radicais, ela se interessa pelo estilo clássico, das pranchas às roupas de borracha modelo short john e maiôs mais comportados. “Pedi ao meu shaper, o Filipe Hage, que fizesse uma prancha menor, mas com estilo retrô. Hoje uso uma single fin [monoquilha] 5’10. As pranchas originais da época eram muito pesadas e não tinham cordinha, não sei nem como as mulheres aguentavam carregar.”

 

Peu coleciona câmeras fotográficas analógicas, duas filmadoras super-8 e 16mm, uma máquina de escrever, carro, roupas e até malas da época

 

Outro entusiasta do surf do passado, o profissional catarinense Fernando Fanta, 30, explica que seu interesse por pranchas menos voltadas à performance surgiu de tanto ver o equipamento de seus tios na casa dos avós, na Guarda do Embaú. “Minha manobra favorita hoje é a rasgada usando totalmente as bordas da prancha. Meus objetivos no mar mudaram. Atualmente vejo essa linha como o jeito certo de aproveitar o que o surf tem de melhor”, postula.

Fanta, como muitos dos retratados aqui, apareceu com destaque na ótima série 70 e tal, exibida no canal Off e dirigida por Rafaela Melin. A série repercutiu muito junto aos mais velhos e à audiência jovem, tentando entender e explicar o que havia de mágico no surf, nas praias e nos pioneiros daquela época.

Monoquilha e ar-condicionado

Segundo Fanta, o modus operandi dos nossos tempos, com excesso de informação e apelo de mercado, ultrapassou todos os limites, e as pessoas se deram conta de um  futuro vulnerável: “Estamos tentando frear o processo para resgatar a essência do esporte e todas aquelas sensações que são a base não apenas daquela época, mas do surfista em si”.

Shaper desde 1972, o carioca Victor Vasconcelos diz que olhar para trás é importante para resgatar a história, em especial o descompromisso do esporte, aquele momento introspectivo de uma queda solitária às 5 da manhã, que talvez tenha se perdido na última década. Mas, ao mesmo tempo, a evolução de técnicas e materiais não deve ser desmerecida.  “Duvido que os garotos de hoje iam gostar de derreter vela para fazer parafina”, provoca. A seu ver, o cara que despreza um aéreo do Gabriel Medina com a desculpa de que não é retrô está é morrendo de inveja. “Não é porque o cara surfa de alaia que ele não pode valorizar a evolução do esporte.”

 

"Estamos tentando frear o processo para resgatar a essência do esporte e todas aquelas sensações que são a base"

 

Remando contra a maré dos garotos saudosistas, há quem diga que todo esse amor pela década de 70 não passa de modismo. “Quem diz que curte os anos 70 com o papinho de que não gosta de competitividade não sabe o que está falando. Foi nessa década que surgiram os primeiros campeonatos mundiais. O pau comia no mar”, manda Julio Adler, jornalista especializado em surf e ex-surfista profissional.

Julio diverte-se com a paixão dessa turma pelas pranchas de madeira: “Madeira era coisa de imaginário uga-uga de havaiano, que surfava com toco. O poliuretano chegou ao Brasil ainda nos anos 60 e todo mundo ficou louco, ninguém mais queria saber de madeira nos anos 70, não. A turma da praia gostava era de novidade”.

 

"Quem diz que curte os anos 70 com papinho de que não gosta de competitividade não sabe o que está falando", diz Julio Adler

 

O shaper paulistano Gregório Motta, 32, diz que a busca pelo espírito libertário e experimental da época reflete em sua produção. Segundo ele, nos últimos dois anos os pedidos por modelos de mono e biquilhas aumentaram cerca de 70%. “O pessoal não chega aqui e diz: ‘Eu quero uma prancha estilo anos 70’. É mais do que isso. Eles falam que querem fazer uma queda mais tranquila, com mais remada, ficar longe do crowd. Esse interesse pela década de 70 é a forma que o surfista de raiz encontrou para se afastar do modismo do surf. Mas até isso está virando moda”, diz. “Já existe o playboy que vai pra praia de BMW com uma monoquilha lindona no rack e deixa lixo na areia. Está aí a diferença: você pode pegar onda ou você pode ser surfista”, completa o shaper.

O velho é o novo novo

Alex Knost, ícone do surf old school apesar de ter apenas 29 anos, conversa com a Trip diretamente do Havaí

Você se tornou um ícone da nova geração do surf com um estilo de pegar onda que remete aos anos 70, uma época que você não viveu. Como isso começou?Nasci em Costa Mesa, na Califórnia. Nunca gostei de andar com pessoas da minha idade. Via os filmes de surf do meu pai, andava com os amigos dele, usava camisas velhas do meu avô. Eu só queria me divertir sobre as ondas.

Você diz que largou os campeonatos em busca de um surf mais livre, longe do mercado, mas ainda assim representa uma marca. Tenho muita sorte de ganhar dinheiro fazendo o que gosto, sendo eu mesmo, surfando como acho melhor. Mas devo admitir que até hoje ainda sofro quando tenho que colar o adesivo de um patrocinador na minha prancha. Sim, estou no mercado, mas isso não significa que se não houvesse o dinheiro eu estaria fazendo outra coisa.

Você é considerado um ícone de estilo. Algumas pessoas o chamam de hipster. Isso ofende você? Tem gente que prefere agredir os outros a fazer algo construtivo. Não concordo, mas respeito a opinião alheia. Gosto de roupas, acho esse universo divertido, mas não dou tanta importância assim ao assunto como dizem por aí.

Você passou alguns anos com o cabelo pintado de preto e com um corte ousado. Sofreu preconceito no mar? Sim. Eu mesmo pintei para esconder minha cara de surfista da Califórnia, meu cabelo amarelo. As pessoas deveriam me julgar pelo que eu sou, pelo meu surf, não pelo que faço com o meu cabelo. Mas já desisti e estou parecendo o Iggy Pop outra vez. [Risos.]

Muitos surfistas profissionais de hoje não bebem, não fumam, não saem à noite. Como você consegue ser surfista e vocalista de banda de rock? Eu como coisas saudáveis. Não precisamos de muita comida para sobreviver, então eu basicamente como um pouco de salada – prefiro as orgânicas – e tomo café. Durante as turnês eu também costumo tomar cerveja e fumar um cigarro. Nada precisa ser tão rígido.

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