Cozinho, logo existo

por Fernanda Danelon
Trip #165

O mundo visto da cozinha do chef Aderval Machado, baiano que conquistou a SP chic dos 60

A cozinha do Terraço Itália estava em polvorosa. O imigrante Evaristo Comolatti, fundador da casa italiana que se consolidou como cartão-postal de São Paulo, acabara de confirmar a eminente visita da rainha da Inglaterra ao restaurante. Em novembro de 1968, Elizabeth II iria, com seu ilustre cortejo, admirar a bela vista da metrópole no terraço de 165 m de altura. E ainda degustar um coquetel gentilmente oferecido pelo italiano, que fazia questão de receber visitas ilustres em seu salão. Nessa época, a cozinha com mais de 30 funcionários já era comandada por seu Machado, o migrante nordestino que teimou até conquistar posto de destaque na gastronomia paulistana. Ele não se intimidou com os nobres convidados, e a recepção foi um sucesso.
A rainha e o príncipe Philip só não pude­ram saborear o mais famoso prato criado por seu Machado, o Camarão no coco verde, que entraria no cardápio algum tempo depois: “Desenvolvi esse prato para turistas, a fim de apresentar a comida brasileira ao
pa­ladar estrangeiro. Assim, o conhaque usado para flambar o camarão tem um apelo internacional, e o leite de coco junto com o coentro trazem o sabor exótico e bem brasileiro”, explica o cozi­nheiro. Solicitadíssimo, o prato consta até hoje do cardápio do Terraço Itália, coroando 38 anos de sucesso.
   
Glamour com rapadura

Aos 72 anos, Aderval Emílio Machado continua com apetite  insaciável. Ele acaba de abrir mais um restaurante em São Paulo, o Bistrô da Praça. Seu Machado reestréia no métier como sócio de Roberto, terceiro dos cinco fi­lhos que teve com a companheira, Firmícia. Meio século o separa da pequena cidade natal de nome pomposo, Presidente Dutra, na Bahia. Dos 57 anos vividos na capital paulista, 54 passou enfurnado na cozinha. Em meio a colheres de pau e frigideiras fumegan­tes, seu Machado viveu dois terços de sua vida com um olho na panela e outro no salão, de onde extraía informação do que acontecia lá fora, nas ruas. Regado a azeite e uma imensa fome de aprender, o baiano do sertão viu o mundo da cozinha e acompa­nhou a história do Brasil com a
barriga esquentando no fogão.
Mas,­ antes de refogar o tempero na panela, seu Machado serviu muito prato no salão. A gastronomia se tornou um objetivo atraente após descobrir que o salário do chef era cinco vezes maior do que o dele. Pleiteou uma ocupação humilde na cozinha, já determinado a aprender o ofício. Seu primeiro emprego foi no Taverna do José, na rua Albuquerque Lins. Desde então passou pelo Le Provençale, na rua Martins Fontes, pelo Belle Époque, no Clube Escandinavo, e por outros tantos até comprar seu primeiro restaurante, o Chuleta Dourada, em 1985.

 

Gostava de espiar da cozinha a figura do então prefeito paulistano Faria Lima (1965-69), que jantava quase diariamente no Terraço. “Cansei de chutar bunda de garçom para se demorar a tirar os pratos a fim de ouvir as conversas nas mesas de gente famosa. Conhecia as figuras dos jornais e queria saber sobre o que falavam durante as refeições”, confessa o chef, sem pudor algum. Foi a sede de saber que impulsionou seu Machado a conhecer a cidade grande.

“Cansei de chutar bunda de garçom para se demorar a tirar os pratos a fim de ouvir as conversas nas mesas de gente famosa”


três gerações de cozinheiros

Um burrico caminha pela estrada de terra batida na madrugada de 6 de março de 1953. Carrega no lombo um jovem casal que procura a estação de trem mais próxima, ponto de partida para a viagem sem volta com destino à capital paulista. Aderval e Firmícia aproveitaram a escuridão noturna para fugir de um casamento arranjado cuja noiva não era ela, mas outra antiga namoradinha do então menino Aderval. Depois do matrimônio forçado com uma, o noivo decidiu levar a outra, verdadeira amada, para construir uma nova vida em São Paulo.
O chef autodidata acompanhou a introdução do strogonoff no Brasil, trazido pelo austríaco Barão von Stuckart, dono de um dos grandes templos da noite carioca, a boate Vogue. A efervescência cultural do Rio de Janeiro nos anos 60 era assunto diário na imprensa e, é claro, não passou despercebido pelo astuto cozi­nhei­ro. “Com a tábua e a faca na mão, eu escutava intrigado ‘Chega
de saudade’ tocando no salão. Quando lançaram o filme Orfeu do
Carnaval [de Marcel Camus, 1959], fui ao cinema assisti-lo umas 50 vezes. Aquilo tudo era muito diferente e fascinante.”
Apreciador da velha e boa feijoada, com tudo a que se tem direito, incluindo orelha, pé, rabo, costela e lombinho de porco, seu Machado introduziu os quatro filhos homens na arte culinária – só a filha, Sílvia, não cozinha. Hoje, a família come­mora a terceira geração de cozinheiros de respeito na gastronomia paulistana. O neto Caio começa a se embrenhar na cozinha do Di Bistrô, restaurante cujo dono é seu pai, Cássio, quarto rebento de seu Machado, que já possui alguns restaurantes bem cotados na cidade. Se hoje os filhos são empresários no ramo de alimentação, é graças ao ímpeto gourmand e gourmet do patriarca que não desgruda da cozinha – ainda que em casa seja a mulher quem faz a comida.

Vai lá: Bistrô da Praça. Praça Thomas Morus, 169. Tel.: (11) 3675-2694

 

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