Com o paraquedas da mente aberto

por Luiz Alberto Mendes

RELIGIOSO

 

Agradeço à vida que me trouxe vivo e lúcido até esse momento. Foram muitos maus e duros momentos vividos. Mas incrível, constato que construí outra vida e já possuo bons momentos para lembrar. A maravilha, a loucura (não somos sãos de todo...) e o desespero de ser. Aquela ansiedade para ter nosso tempo e nosso espaço sob nosso comando. E o pior é que quando conseguimos, não sabemos o que fazer com isso. Então produzimos a angústia, o vazio de interesses.

Mas deixa que eu fale de boas lembranças.

Estava casado, em lua de mel, instalado em uma hospedaria próximo à praia da cidade de Bertioga. Logo cedo apanhei uma bicicleta de muitas marchas e sai, despreocupadamente, a pedalar pela orla da praia. Havia muita cor, muita luz e o mar... O mar é sempre uma alegria para meus olhos cansados de muralhas, grades, agora também de prédios, rua e carros. Mas eu procurava algo extraordinário, estava precisando me emocionar.

Primeiro encontrei o entreposto onde os pescadores trazem os peixes ainda frescos direto da fonte. Fiquei olhando aquela gente comprando e aqueles peixes de múltiplas cores, cheio de curiosidade. Mas ainda não era aquilo. Continuei colocando pressão nos pedais.

De longe avistei os barcos. Eles cresciam conforme eu me aproximava. De repente eram muitos e estavam meio que tombados, mal ajeitados, grudados ou emborcados uns por cima dos outros... Devia ser um cemitério de embarcações. Encostei a bike dentro de um cais também bastante envelhecido. Com a alma na ponta dos olhos subi a bordo do comboio de carcaças. Havia alguns em seco e outros balançando ali no pequeno e raso caís.

Como eram lindos aqueles barcos... Exalavam um cheiro único, algo de azedo, penetrante. Velhos, com o madeirame todo carcomido, já acinzentado, curtido pelo sal e pelo sol. Os ferros; parafusos, uniões, travas, barras de sustentação, estavam tão enferrujados que se oxidavam a restos de correntes na madeira do convés. Tudo aos pedaços, faltando partes, quebrado, lambido pelas ondas, deteriorando ao sol e ao balanço do mar. Agora lembrá-los os tornam mais bonitos ainda porque têm as cores de minha memória.

Aqueles cascos pretos, tão batidos por tantos mares me falavam de quantas vidas que se realizaram e se desenvolveram dentro deles. Foram meio de vida de tantos e por tantos anos... A beleza insuperável estava no que haviam significado. Quantas bocas alimentaram? Quantas vidas sustentaram? Quantos objetos carregaram e a quanto beneficiaram? Quantos serviços prestaram a tantas pessoas...

Alguns ainda balançavam na água semelhantes a pássaros derrubados pela ventania. Foi emocionante ver outros ali tombados na areia com o ventre para cima como elefantes inúteis esperando a lenta destruição natural... Eu os sentia como seres vivos, impregnados que estavam da alma, da esperança e do suor das pessoas que neles viveram. Passavam uma tristeza mansa, algo de terno e doce, mas nem por isso menos comovente. Algo apertou no peito, as lágrimas rolaram pela minha cara sem que eu conseguisse entender.

Voltei certo de haver vivido momento de grande significação. Amar aqueles barcos em decomposição era a liturgia necessária. Foi uma experiência transcendental para mim. O mais próximo que consigo do religioso.

                                             **

Luiz Mendes

28/05/2012.    

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