’’Bons tempos em que sem-vergonhice no Brasil era andar sem roupa. Hoje é, literal ou metaforicamente, fazer cocô na praça pública’’
"E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela"
Pero Vaz de Caminha, Porto Seguro, 1/5/1500
A Carta de Pero Vaz de Caminha, tida como a certidão de nascimento do Brasil, menciona, ao longo de suas linhas, nove vezes a palavra “vergonha” ou alguma derivação, como “desvergonha”. Das nove, seis se referem explicitamente, como na citação acima, aos órgãos sexuais masculino ou feminino. De origem latina e presente nas línguas que dela descendem, se não estou enganado, foi somente em Portugal e na Espanha que, por volta do século 15, a palavra “ver gonha” passou a designar, também, os órgãos sexuais. Mais tarde esse uso da palavra desapareceria, e “vergonha” passaria a designar, assim como em outras línguas, apenas a vergonha mesmo.
No que isso pode ter nos influenciado, eu não sei. O que sei é que, desde os tempos de Caminha, parecemos ter nos acostumado a viver bem, e tranquilamente, com as vergonhas expostas. No bom e no mau sentido. No bom sentido, neste país de pouca roupa, todo mundo concorda. Mas, no mau, a maneira como no dia a dia nós, brasileiros, deixamos as vergonhas expostas, é nada menos do que trágica. Exagero?
Da janela do meu escritório, vejo uma praça. Ao longo do dia, passam dezenas de pessoas com seus cães, que fazem cocô. Depois de atenta e científica observação, identifiquei três tipos de frequenta- dores: (A) os que limpam espontaneamente o cocô; (B) os que olham em volta, tentando saber se tem alguém observando, e então decidem se limpam; e (C) os que, convictamente, não limpam. Os grupos A e C são minoritários. O B tem ampla maioria. Ou seja, segundo minha pesquisa, os frequentadores da praça não têm vergonha de não limpar a sujeira. O que sentem é vergonha de serem flagrados. A disposição para limpar ou não o cocô é democrática: há limpadores e emporcalhadores em todas as classes sociais.
TEMOR DO FLAGRA
Será que a minha praça pode ser entendida como um retrato do país? Talvez se segmentarmos um pouco a análise. Exemplo: existe uma parcela da população que não se incomoda em exibir em público as vergonhas. A única coisa que incomoda é a eventualidade de serem punidos em função do exibicionismo. O que pode ser entendido como uma extrapolação do grupo B da praça. Eu me refiro aos políticos profissionais, que, para citar um único caso, enquanto o país passa por recessão com inflação (e impõe-se a nós todos a necessidade de apertar os cintos e fazer sacrifícios), ampliam descaradamente a parcela do dinheiro público que eles podem usar sem medo, o fundo partidário. Ou seja, eles levam os cachorros para fazer cocô na praça e não têm a menor vergonha de sair de lá sem limpar, desde que não corram o risco de ser presos por causa disso. E não vamos cair na besteira de considerar os políticos como seres especiais: eles são brasileiros como nós, e estão onde estão porque foram eleitos por nós, brasileiros como eles.
No século 15, o moralismo ibérico, conservador, católico, tacanho e inquisitorial, deu o nome de “vergonha” aos órgãos sexuais humanos. E espantou-se quando, nas tropicais praias brasileiras, índias e índios exibiam, não sem formosura (conforme Caminha admitiu), e sem vergonha alguma, as próprias vergonhas. Ah, bons tempos os do Brasil daqueles anos, nos quais sem-vergonhice era apenas andar sem roupa. Hoje, falta de vergonha é, literal ou metaforicamente, fazer cocô na praça pública, só se evitando fazê-lo por medo do flagrante e da punição. Enquanto esse traço representar uma grande parcela de nossa população, estaremos ferrados.
*ANDRÉ CARAMURU AUBERT, 53, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com